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O homem que morreu três vezes

O homem que morreu três vezes


  • Record
  • 2003
  • Capa tipo Brochura
  • 8501067156
  • 336 Páginas

O homem que morreu três vezes, de Fernando Molica, pode ser um lido como um livro de aventuras. É a história de um personagem que não cabe em si mesmo e, a cada cem páginas, troca de pele, surpreendendo o leitor. Num primeiro momento, ei-lo no papel de um jovem advogado gaúcho, ambicioso e inescrupuloso, que, gratuitamente, sai delatando desafetos como comunistas. No momento seguinte, já em São Paulo, ocorre exatamente o contrário. É ele quem está pendurado no pau-de-arara, acusado de subversivo. O mais impressionante é que, na tortura, o dedo-duro de ontem não delata ninguém. Sai da prisão quase como um herói. E ganha o mundo: Santiago, Paris, Argel, Beirute etc. A partir daí, uma fantasia só não lhe basta. Precisa de duas. E assim veste-se de boa-vida internacional e perigoso terrorista. Enquanto viaja de primeira classe e come nos melhores restaurantes da Europa, fornece armas para os atentados comandados por Carlos, o Chacal, o homem mais buscado pelos serviços secretos nos anos 70 e 80. De repente, some do mapa. Anos mais tarde, aparece – ou desaparece? – sob novo nome numa pequena cidade italiana. Fim da linha? Fim da história? Façam suas apostas.

O homem que morreu três vezes pode ser lido também como um fascinante mergulho numa época dramática. O Brasil gemia sob a ditadura militar, a Revolução parecia estar na ordem do dia e boa parte da juventude resolveu assaltar os céus. O desfecho do confronto é conhecido, e o livro não chega a trazer novidades nessa área. Mas tem um mérito: passa bem o clima daqueles anos – na fase da guerrilha improvisada, confiança, companheirismo e disposição de luta; na etapa da guerrilha liquidada, ao contrário, desmoralização, infiltrações e traição.

O homem que morreu três vezes pode ser lido ainda como uma boa reportagem, com todos os ingredientes a que tem direito uma boa reportagem: ponto de partida instigante, trama desconcertante, personagem imprevisível, depoimentos impressionantes, lances inacreditáveis. E, atrás de tudo isso, um repórter persistente, que não larga o osso quando fareja uma história única que precisa ser contada por ele e merece ser conhecida por todos.

Franklin Martins

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O GLOBO, 08/11/2003 As aventuras de um guerrilheiro macunaíma

Jornalista tira da sombra o único brasileiro que se envolveu com o terror

Agora é tudo verdade. Por mais incrível que possa  parecer, no cenário dos anos de chumbo existiu um militante da luta armada brasileira que havia sido anticomunista de carteirinha, foi banido pela ditadura após um daqueles seqüestros de diplomata, e virou, na França, terrorista internacional, armeiro de ninguém menos que Carlos, o Chacal – uma espécie de Bin Laden da década de 70, com bem define o autor. Depois do sucesso de seu primeiro livro “Notícias ,do Mirandão” – uma ficção mais verossímil do que se imagina – o jornalista e escritor Fernando Molica se meteu numa mirabolante história de não-ficção que tinha tudo para ser “uma grande cascata”, como ele próprio admite, mas é realidade em estado bruto, feita para reportagem de alto quilate. Tão criativo quanto o personagem que desvendou, Molica transforma a pauta de duas reportagens de 14 minutos para o “Fantástico”, da Rede Globo, num espetacular livro-reportagem-investigativa, após cinco anos de trabalho, 120 pessoas ouvidas, arquivos públicos revirados e muito tempo na internet.

Com 22 anos de jornalismo, Molica tem uma trajetória singular como escritor. Estreou com uma ficção num cenário real (um grupo revolucionário aposta numa associação com o tráfico nas favelas do Rio) e, um ano depois, chega a uma não-ficção que parece irreal.

Atraído em 98 pela “história do único brasileiro que se envolveu com o terrorismo inter-
nacional nos 70”, o autor reconhece que o protagonista não foi descoberto por ele. Já havia sido mencionado antes pelo livro “Até o fim do mundo, a caçada a Carlos, o Chacal, o terrorista mais procurado do mundo”, de David Yallop (Record), de 93, e por pequenas reportagens. Molica, entretanto, tem o mérito de ter sacado que o personagem merecia mesmo virar um livro e com duas histórias em uma.

Habilidade no contato com as fontes
Na primeira história, Molica é o narrador com a capacidade de entretenimento de um contador de “causos” – característica de bons repórteres. Na outra, em itálico, o autor faz o making.of no qual é o protagonista da investigação sobre um homem considerado desaparecido, procurado pela filha. Extremamente habilidoso no contato com as fontes, o veterano jornalista revela um entusiasmo que deveria servir de modelo para as novas gerações de repórteres, entediadas com a aparente crise da pauta. Está criado o fascinante clima de metalinguagem, em que a aventurada reportagem se mistura ao realismo fantástico – se não fosse o cuidado que o autor teve em checar dados, obter documentos, contrapor depoimentos e até mesmo ensinar a Polícia Federal como se descobre que dois passaportes foram falsificados por Perera, um mestre dos disfarces.
Tanto assim que o personagem permanece desconhecido até mesmo para quem participou da luta armada. Molica chega a compará-lo “a um animal que tem o capricho de ocultar cada pegada de uma trajetória marcada por trocas bruscas de direção”. Um gato de três vidas, muitos tetos e amores. Perera nasceu no Rio Grande do Sul, mudou-se com a família para São Paulo, viveu exilado no Chile, na Argélia e na França. Abandonou mulher e filha no Brasil. Da França fugiu para a Itália, onde morreu de câncer em 1996. Perera escapou até do maravilhoso arquivo de Elio Gaspari sobre a ditadura.

Outra façanha de Perera foi ter driblado a Direction de la Surveillance du Territoire (DST), o serviço oficial da contra-espionagem francesa, que em 94 pegou Chacal, preso em, Paris e entrevistado por Molica, por fax, um dos documentos publicados no livro. Outra vítima do ilusionista, Chacal diz que Perera era nada menos que o sucessor de Lamarca.

Após furar o cerco a Chacal, iniciado em 1975, Perera se transforma no médico Paulo Parra, especialista em “psicocibernética” – mais um golpe. Embora Parra tenha negado ser Perera, a um jornalista brasileiro que o questionou dois anos antes da morte, Molica comprovou na Itália que eram a mesma pessoa. Nesse momento, o repórter está acompanhado da filha de Perera, Cristina, que embarcou na viagem em busca do pai (uma das reportagens da TV).

Pode ter havido alguma imprecisão no subtítulo com o uso do apelido “Chacal brasileiro”, emprestado de algumas reportagens. Não há relato sobre qualquer ação armada da qual Perera tenha participado diretamente. Somente no Presídio Tiradentes ele passou a ser considerado militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), cujos dirigentes – o ex-sargento Onofre Pinto, desaparecido desde 1974, e o ex-capitão Lamarca – conheceu aparentemente por acaso, como advogado do grupo. Só o oportunismo explica como um advogado “cassado” em 64, suspeito de corrupção (foi demitido da Junta Comercial acusado de, pasme, falsificar documentos) passa para a oposição ao regime cujo golpe havia apoiado.

Um personagem eclético e sedutor
Ou como um católico, ideologicamente ultraconservador, se transforma num militante de esquerda, preso, torturado e, mais tarde, no exílio, revolucionário internacional, fornecedor de armas para um dos terroristas mais temidos.

Poucos ficcionistas seriam capazes de criar personagem tão eclético e sedutor.
Justamente para escapar da ficção, Molica desempenhou o papel de um investigador obstinado, ressuscitando um personagem muito esquisito, de tempos igualmente estranhos, em que havia gente no Brasil capaz de dar a vida por uma causa política. O trabalho revela, diz Molica, o “lado B” da História e até mesmo a insanidade daqueles tempos. Quem poderia imaginar que no meio da fotografia dos 70 presos políticos libertados em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher, seqüestrado na luta armada, estivesse uma figura como Perera, quase um impostor? E como esse mesmo personagem cheio de contradições, quase um vigarista, se transforma em “embaixador da VPR na Europa” e, mais tarde, mim membro do Partido Comunista Brasileiro, que sempre renegou a luta armada? Essa é a história de Perera, o guerrilheiro macunaíma, herói sem caráter dos anos de chumbo.

JORGE ANTONIO BARROS


JORNAL DO BRASIL O segredo do Chacal brasileiro

O jornalista Fernando Molica desvenda a história do guerrilheiro gaúcho que se uniu a uma rede internacional de terrorismo

Terrorista, assassino, mercenário. Tudo ou quase tudo que se diz hoje de Osama Bin Laden era publicado nos anos 70 sobre o venezuelano Illich RamÍrez Sánches, o temível “CarIos, o Chacal”. A imprensa mundial chegou a duvidar da existência do revolucionário, que desde 1997 cumpre pena de prisão perpétua em Paris. Mas o que ninguém esperava era que o “mentor intelectual e espiritual do terrorista” fosse um ordinário advogado gaúcho, Antonio Expedito Carvalho Perera. O trabalho do jornalista Fernando Molica, em O homem que morreu três vezes, foi justamente desvendar o mistério desse advogado que ficou conhecido como “Chacal brasileiro”.

O personagem de Molica, a princípio, poderia ser caracterizado como mais um daqueles homens que, durante a ditadura militar, teve que trocar de identidade ou, como prefere o autor, morrer e renascer algumas vezes. Mas, em quatro anos de apuração – na verdade, de um intenso trabalho investigativo -, o jornalista descobre que Perera teve uma trajetória bem peculiar. Ao contrário dos perseguidos políticos que, desde sempre, endeusaram o comunismo e tinham Che Guevara como herói, o gaúcho apoiou o golpe militar de 1964, chegou a considerar o comunismo uma “imundície pestilenta” e, ainda, pensou em matar o esquerdista Leonel Brizola.

Esse perfil conservador-radical dura muito pouco e se encaixa, na divisão feita por Molica, na primeira vida do personagem, quando ainda assinava Antonio Expedito Carvalho Perera. A morte do católico ortodoxo que abominava Luís Carlos Prestes deu-se quando ele preparou um dossiê acusando seus sócios do escritório de advocacia de serem comunistas. Mais rápidos, os “dedurados” apresentaram provas de corrupção contra Perera.

Num beco sem saída, o advogado fugiu para São Paulo e mudou completamente de vida.

De direitista convicto a advogado de confiança da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) – organização clandestina responsável pelos seqüestros-relâmpagos de embaixadores, assaltos a bancos e luta armada contra os militares -, Perera abandona o Expedito de seu nome e passa assinar apenas Antonio Carvalho Perera. A diferença foi tão sutil quanto determinante para a nova vida do personagem, que duraria até 1975.

Nos 10 anos de clandestinidade paulista, Perera hospedou em seu apartamento líderes revoludonários como Carlos Lamarca e Luiz Alberto Sanz, participou de assaltos e planejou a morte do ministro Delfim Neto. Se no Rio Grande do Sul ele se esforçou para dedurar seus sócios, em São Paulo ele agüentou a tortura da polícia sem entregar nenhum de seus novos companheiros. E o sacrifício não foi pouco. Além do tradicional pau-de-arara e dos choques  elétricos, Perera teve de engolir o orgulho ao ser torturado na frente da esposa, Nazareth. E, ainda, vê-la sendo torturada.

Incluído na lista de presos políticos libertados em 1971, o advogado foi enviado para Europa, onde se transformaria numa espécie de relações públicas da VPR no exterior. Foi na saída da prisão de Tiradentes, em São Paulo, rumo ao “exílio”, que Perera viu pela última vez sua filha, Cristina, na época com 10 anos, e sua mulher. Como um free lancer internacional do terror – título também atribuído ao Chacal-, o advogado passou a se envolver em inúmeras manifestações revolucionárias por diversos países. Seu objetivo seria, de acordo com as pesquisas de Molica, provocar uma articulação mundial para lutar contra governos ditatoriais. O que agrupava, inclusive, o Exército Vermelho Japonês. Foi neste período, no final de sua segunda vida, que veio à tona sua relação com Carlos, o Chacal.

Em entrevista ao Molica, em 1999, o próprio Chacal, apesar de um pouco monossilábico, respondeu sobre sua ligação com Perera. “Tive a honra de encontrá-lo durante nossas viagens, no início dos anos 70. Nós lutamos pelas mesmas causas e alguns amigos em comum nos apresentaram. Perera era um patriota, um líder revolucionário internacionalista, o sucessor do capitão Carlos Lamarca”. As poucas palavras do Chacal foram mais do que suficientes para comprovar a relação dos dois. E não foi difícil para a polícia francesa, em 1975, associar Perera ao terrorista venezuelano.

Procurado pela polícia, o advogado gaúcho precisava morrer para continuar livre. A vida de Antonio Carvalho Perera teve de ser enterrada em Paris. “Ele fugiria para a Itália, onde adotaria um novo nome, uma nova profissão e uma visão de mundo adaptada às necessidades e oportunidades que viriam pela frente”, conta o jornalista. Nascia então Paulo Parra. Um homem de esquerda, mas então às voltas com a legalidade e com as transformações sociais pacíficas. Depois de se tornar amigo de militantes do poderoso Partido Comunista Italiano, Perera/Parra funda a Associazione Internazionale Contro Ia Tortura.

Na Itália, entrevistando pessoas que conviveram com o advogado – lá, médico psiquiatra – e que nada sabiam sobre seu passado, Molica descobriu um novo Perera: um intelectual elegante, educado e preocupado com os amigos. O jornalista soube, ainda, que a morte definitiva de Perera chegara em março de 1996. Com câncer, o Chacal brasileiro morreu na Casa de Cura Santa Rita, em Milão. Uma morte atípica para um líder revolucionário.

O homem que morreu três vezes não é apenas o making of de uma reportagem sobre o Chacal brasileiro veiculada no Fantástico em dois programas, com duração total de 14 minutos. A obra de Fernando Molica é, sobretudo, um testemunho da história recente do Brasil.

E, para quem não se interessa muito por política, o livro é também um belo romance, que narra a busca de uma filha pelo seu pai desaparecido, “que construíra uma história ao mesmo tempo fascinante e perigosa, um homem que, dono de uma vida marcada por contradições conservador e revolucionário; solidário e irresponsável; cristão e ateu; sonhador e oportunista -, protagonizara histórias que permaneceriam no limite entre a lenda e o fato”.

PAULA BARCELLOS


ÉPOCA, 27/10/2003 Da fé ao terrorismo

A saga do advogado gaúcho, católico e conservador, que virou comparsa de Carlos, o Chacal

Católico fervoroso, o advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera não escondia sua admiração por São Tomás de Aquino. Numa fase de devoção radical, raspou a cabeça para demonstrar sua adoração por Santa Teresa d’Ávila. Ex-militante do Partido Democrata Cristão (PDC), conservador, Perera teve uma vida intensa. Apenas uma, não: três. Em O Homem Que Morreu Três Vezes, o jornalista Fernando Molica narra a trajetória dessa personalidade complexa.

Entusiasta do golpe de 64, Perera migrou do PDC para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca, e chegou a esconder em sua casa o líder comunista Luiz Carlos Prestes. Quando deixou o Rio Grande do Sul, o advogado suprimiu o Expedito do nome. Esperava não ser reconhecido. Essa mudança de pele e de atitude representou, segundo Molica, a primeira morte de Perera.

Ex-integrantes da VPR não viam Perera como figura mergulhada na organização. Era apenas o advogado do grupo, e não um militante. Apesar disso foi perseguido pela ditadura. Depois de ser banido do país, em 1971, é que ele foi mais longe. Transitou entre a América Latina e a Europa como uma espécie de representante da VPR Para os militares brasileiros, era um “terrorista de alta periculosidade”. Aliou-se ao Exército Vermelho Japonês e ao terrorista venezuelano Illich Ramírez Sánchez, conhecido como Carlos, o Chacal. “Ele é um patriota e um líder revolucionário internacionalista”, definiu o terrorista, que está preso em Paris. “Nós lutamos pelas mesmas causas”, afirmou.

O livro mostra os bastidores de duas reportagens produzidas para o Fantástico, da Rede Globo. Um dos pontos altos é a revelação de que o portador do dinheiro usado para subornar o policial que facilitou a fuga do cabo Anselmo de uma delegacia carioca, em 1966, foi o ex-preso politico Flávio Tavares. Molica escancara detalhes da vida de um homem que, mesmo depois da Anistia, em 1979, fez questão de se manter longe do Brasil e não ser encontrado nem pela filha. Perera assumiu o nome de Paulo Parra e viveu sua terceira vida, como médico, na Itália. Morreu, desta vez de verdade, em 1996. Sua biografia é tão intrigante que parece ter saído de um filme.

SOLANGE AZEVEDO


ISTOÉ, 19/11/2003 Chacal à Brasileira

Livro conta a saga do homem que inspirou terrorista francês

O que leva um convicto homem de direita a dedicar-se de corpo e alma para a esquerda? Todo o livro O homem que morreu três vezes – uma reportagem sobre o “Chacal.brasileiro”, de Fernando Molica (Record, 335 págs., R$ 38), está impregnado por essa dúvida, embora erradicá-la não seja o objetivo do autor. Nem poderia. Molica, repórter especial da Rede Globo, escolheu como tema a incrível vida vivida pelo advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera, dono de uma biografia tão surpreendentemente transfigurada que não serviria mesmo de parâmetro para responder à pergunta. Perera abandonou suas convicções políticas ao migrar do Partido Democrata Cristão para a organização revolucionária Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e, ato contínuo, atuar no terrorismo internacional comandado por Illich Ramírez Sánches, o temível “Carlos, o Chacal”. A cuidadosa investigação feita pelo autor explica os movimentos que o levaram a pólos tão distintos e torna a obra um instrumento capaz de ampliar as possibilidades de entendimento de nossa história recente.

Década de 60. O homem que considerava o comunismo uma “imundície pestilenta” e apoiou o golpe militar de 31 de março de 1964 vislumbra um futuro de prosperidade (própria) enquanto planeja livrar o País de “esquerdistas” como Leonel Brizola, a quem planejava assassinar. Quem, entretanto, acaba morrendo é ele próprio: em outubro do mesmo ano, é demitido do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, acusado de falsificar documentos. Expedito e Porto Alegre saem de cena, entram Perera e São Paulo. O advogado, agora, defende metalúrgicos, estudantes – esquerdistas, quem diria!

Embora não tenha pertencido ao “quadro da VPR”, Perera é um simpatizante importante da organização e chega a esconder Carlos Lamarca, o homem mais procurado pelos militares, em sua própria casa. Preso e torturado, é mandado para o exílio no Chile. Para se ter uma idéia do quanto está mudado, Brizola passa a ser admirado e a intenção, agora, é assassinar o então ministro da Fazenda, Delfim Netto. Apontado pela imprensa francesa como o “mentor intelectual e espiritual do terrorista Chacal”, ele vira alvo da polícia internacional e precisa morrer de novo. Daí para a frente seria Paulo Parra na Itália, até a morte real, por câncer, em 1996.

Brasil? Nunca mais. Não foi nada fácil para Molica levantar toda a trama. Mas O homem que morreu três vezes comprova que o cruzamento de história com jornalismo, quando bem feito, resulta em belas obras. A leitura seria mais agradável se a história não fosse tão interrompida por transcrições de documentos e detalhadas descrições dos percalços do repórter em busca dos fatos. O autor poderia concentrar o relato no interessante personagem que descobriu.

Também autor do romance Notícias do Mirandão, Molica soube lidar com os mistérios que cercaram as várias vidas de Perera. Está inscrito entre as boas promessas da literatura brasileira. .

Molica investigou a vida de Perera, que passou da direita para a esquerda e precisou morrer três vezes para se livrar da polícia

ELIANE LOBATO


O DIA, 26/10/2003 Um Terrorista Brasileiro

Livro conta a fantástica trajetória de um homem que três dias distintas: militou na direita, foi preso pela ditadura e se aliou ao terror.

‘Ninguém na vida teve tantos pecados que mereça morrer duas vezes’, escreveu o escritor português José Saramago. A frase, citada no livro-reportagem do, jornalista Fernando Molica, parece provocação à trajetória do misterioso personagem que viveu e morreu três ou mais vidas distintas – na mesma vida. Tão difícil quanto saber os pecados do homem que nasceu Antonio Expedito Carvalho Perera, no Rio Grande do Sul, esteve preso como militante de esquerda e foi terrorista na França, ao lado de Carlos, o Chacal, é conhecer suas vidas e mortes. Talvez, a única pessoa que soubesse traduzir seu caráter contraditório fosse o médico-psicólogo-charlatão Paulo Parra, sua terceira e última personalidade. Depois de cinco anos de trabalho, Molica conheceu parte dessa história e escreveu O homem que morreu três vezes, que será lançado terça-feira pela Editora Record.

Perera representou vários papéis. Quase padre, atirou pedras contra o líder comunista Luiz Carlos Prestes, foi advogado conservador ligado à Igreja e delatou inimigos como comunistas. Foi demitido da Junta Comercial acusado de fraude – com base em Ato Institucional do golpe militar que apoiara em 1964. Mudou-se para São Paulo, onde tornou-se defensor de guerrilheiros, abrigou em casa o capitão do Exército Carlos Lamarca, que aderiu à luta armada, liderando a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Foi preso, torturado e banido. No exterior, apresentava-se como representante da VPR em encontros de exilados. Desinteressado do País, aliou-se à causa terrorista internacional e ao venezuelano Illich Ramírez Sánchez, o Chacal. Perseguido, criou novo personagem, o psicólogo Paulo Parra, que viveu em Milão e, depois, na pequena cidade de Bettola.

Perera não queria ser um homem comum
E comparado por Molica a Joseph Fouché, um ex-seminarista que se destacou na Revolução Francesa e se notabilizou pela capacidade de mudar de posição segundo as conveniências. “Ele era fiel a ele mesmo, à sua vaidade, a seus desejos e à sua ascensão”, define Molica. Para a ex-companheira Yolanda Prado, a Danda, filha do historiador Caio Prado Jr. e com quem Perera viveu na França, “ele se tinha na mais alta conta”.

Não hesitou em abandonar a mulher, Nazareth, e a filha, Teresa Cristina, de 12 anos, no Brasil ao ser incluído na lista de presos libertados em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. Algumas características o acompanharam em todas as suas vidas: a vaidade extrema, a elegância, a arrogância, a inteligência privilegiada e a ambição. Não suportava a idéia de ser um homem comum. Teve uma vida de filme. Virou livro.

A persistência e sorte do autor
Jomalista experiente, Femando Molica temeu que a história de Antonio Expedito Carvalho Perera pudesse parecer “uma grande cascata”. O que – lhe chamou a atenção, inicialmente, foi a participação de um brasileiro no terrorismo internacional, mas aos poucos se encantou com as diversas facetas do protagonista. A origem de O homem que morreu três vezes foram reportagens que produziu para o Fantástico.

As maiores dificuldades dele foram obter informações sobre Perera no terror. “É um tema delicado na Europa”. A narração segue padrões jornalísticos, suas fontes aparecem contando a história. “Não quis romancear muito a história, porque já é tão inacreditável que eu temia perder pontos na credibilidade”, explica. Em todo o texto, o autor conta os passos que deu para chegar aos fatos, onde colheu as informações, com quem e de que modo. “Queria mostrar como é esse processo e que não há mágica. Tudo é fruto de muito trabalho, conseqüência de esforço”.

A estrutura do livro, revela, foi resultado de um lance de sorte tão inacreditável quanto a vida de Perera. Depois de tentar localizar sem sucesso a filha do personagem, Teresa Cristina Perera, foi fazer  uma reportagem sobre um grupo de dança irlandês na Alemanha. Um dos bailarinos, quando soube que Molica era brasileiro, contou que adorava as nossas mulheres e que uma bailarina brasileira, amiga dele, estava naquele momento em sua casa, em Berlim: Teresa Cristina, a filha. Ela foi fundamental para a apuração. :

Anticomunista ferrenho na juventude
Nascido no interior gaúcho, Antonio Expedito Carvalho Perera quase foi padre. Anticomunista, na faculdade de Direito aliou-se à Juventude Católica, “que sempre lutou contra a esquerda”, segundo um amigo.

Filiou-se ao Partido Democrata Cristão e candidatou-se a deputado estadual, mas não se elegeu. Em 1959, aos 28 anos, uniu-se a estudantes de Caxias do Sul para jogar pedras contra comitiva do líder do PCB Luiz Carlos Prestes.

Já trabalhava como advogado, dividindo escritório com dois colegas. Preterido como candidato a prefeito de Porto Alegre, queria ser deputado federal. O candidato oficial do partido, Leônidas Xausa, sofreu enfarte e, quando o correligionário estava no hospital, publicou anúncio em que pedia votos a eleitores de Xausa. A nota lhe valeu xingamentos de “vagabundo e sem-vergonha” da mulher do candidato.
Logo após o golpe militar, procurou o vereador e capitão do Exército Luiz Augusto Sommer e lhe entregou duas listas: uma com os nomes de pessoas que indicava para cargos públicos – o primeiro era ele – e outra com desafetos – entre eles, Xausa –  quem acusava de comunistas. Mas o capitão era parente  da mulher de um denunciado, que juntaram provas de que ele havia cometido fraude em processo na Junta Comercial e pediram abertura de inquérito.

Foi suspenso e demitido. Expedito chorou como criança no colo da mulher, Nazareth. “Pela primeira vez, virou um homem humilde”, contou ela.

Abrigo para Lamarca, prisão e exílio.
O ano de 1969 viu a esquerda radical optar pela luta armada para combater a ditadura. Um dos homens mais procurados pelos militares era o capitão do Exército Carlos Lamarca, que abandonou a Força para se unir à guerrilha. Ele e outros dois integrantes da cúpula da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) ficaram no apartamento de Antonio Expedito Perera, que se mudara para São Paulo com a mulher e a filha. Sua aproximação da organização é controversa. Muitos atribuem ao ex-sargento do Exército Onofre Pinto, um dos dirigentes da VPR que esteve na casa do advogado.

Depois de Onofre ser preso, policiais invadiram o apartamento. Perera também foi preso e, por não entregar ninguém, mesmo sob tortura, conquistou respeito. Na prisão, andava de robe e fumava cachimbo. Foi incluído, em 70, na lista de presos que seriam trocados pelo embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher. Perguntou à mulher se queria acompanhá-lo. Nazareth não acertou – ele tinha casos extraconjugais. A filha nunca mais o viu.

No exílio, conseguiu de Onofre a autorização para representar a VPR e viajou para Chile e França, onde passou a viver com Yolanda Prado. Perera era visto com reservas por muitos. Alguns acreditavam que pudesse ser agente infiltrado da repressão. Chegaram a pedir seu “justiçamento”, morte para os traidores da esquerda armada, mas ninguém provou nada.

Respeitado por Carlos, o Chacal
“Tive a honra de encontrá-lo nas nossas viagens, no início dos anos 70”. A declaração sobre Antonio Expedito Perera é de Carlos, o Chacal, líder terrorista na Europa à época. Por meio de advogada, Chacal, condenado à prisão perpétua, respondeu às perguntas do jornalista Fernando Molica por escrito. “Lutamos pelas mesmas causas. Sucessor do capitão Lamarca, ele é um patriota e um líder revolucionário internacionalista”, disse Chacal.

Documentos de serviços de informações brasileiros revelam que Perera era monitorado. Em relatório do Centro de Informações do Exército, é descrito como “terrorista de alta periculosidade; contrabandista de armas e munição; e seria ligado ao grupo do Chacal e ao Exército Vermelho Japonês” .

Ainda na década de 70, nova mudança. O brasileiro Paulo Parra chegou à Itália apresentando-se como profissional em psicocibemética. Fez sucesso. Nos anos 90, morou em confortável casa de campo em Bettola, Norte da Itália. Mauricio Kórber, estudante de artes plásticas, trabalhou para ele nove meses. Ao abrir uma gaveta com a etiqueta “subversão”, ele encontrou, entre outras fotos, a de Femando Gabeira à época da luta armada. Outras pastas tinham adesivos com a sigla Dops (Departamento de Ordem e Política Social). Para alguns, o arquivo seria indício de que Parra, ou Perera, era um agente infiltrado.

RAPHAEL GOMIDE


GAZETA DO POVO, CURITIBA, 07/12/2003 Identidade tripla

O Homem Que Morreu Três Vezes biografa terrorista brasileiro

Em 1964, ano em que ocorreu o golpe militar no Brasil, um advogado gaúcho, consultor jurídico da Junta Comercial do Rio Grande do Sul, era exonerado de seu cargo por alegação de corrupção.

Antonio Expedito Carvalho Perera, a bem da verdade, era mais uma vítima do esquema que se instalava a partir de então com o objetivo de extirpar do país todo e qualquer cidadão que estivesse envolvido com o comunismo.

De sua parte, Perera também não era flor que se cheirasse. No clima do golpe, tentara se aproximar dos poderosos delatando colegas e sócios, em uma ação que mataria dois coelhos em uma cajadada só: ligado a partidos de direita, vingar-se-ia de alguns ex-colegas e ainda alçaria posições hierarquicamente superioras.

Somente 27 anos após o episódio da exoneração o nome de Perera chegaria ao jornalista Fernando Molica, repórter especial do Fantástico, da TV Globo. Ainda assim, não seria o de um advogado cassado pela repressão, mas o de um guerrilheiro ligado à VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) um dos tantos grupos de orientação socialista que lutava contra o poderio militar – que fora exilado no Chile em uma das operações de troca de presos políticos por diplomatas seqüestrados no Brasil.

“Nunca tinha ouvido falar de um brasileiro que tivesse participado diretamente do chamado terrorismo internacional”, conta Molica. Como o repórter descobriria naquele dia, Perera, além de mais um personagem fruto dos conflitos do período ditatorial, tinha uma trajetória única: na Europa unira-se ao terrorista internacional Illich Ramírez Sánchez, “Carlos”,o “Chacal”, em uma série de ações que visavam a uma revolução socialista internacional.

A história soou por demais interessante a Molica que, desde 1999, investiu boa parte de seu tempo profissional e pessoal para desvendar a história de Perera, O Homem Que Morreu Três Vezes (Record, 335 págs., R$ 38), o “Chacal brasileiro”. Antes do livro, Molica contou duas vezes partes da história de Perera em reportagens do Fantástico. Uma em 1999, logo que tomou conhecimento de sua existência, outra em 2002, após ter sido procurado por um homem que havia morado na Itália com o advogado – que, naquela época, vivia como psiquiatra sob o nome de Paulo Parra.

Coincidência
Como bom repórter, Molica não pôde deixar que a complexa história desse desconhecido personagem brasileiro se encerrasse nos poucos minutos de duração de uma reportagem de tevê. “Houve uma coincidência absurda, quase ficcional, e eu consegui me encontrar com a Cristina (filha de Perera) na Europa. A partir desse momento eu achei que essa história era boa demais para não ser contada em livro”, diz o jornalista e escritor.

Mas de ouvir o nome de Perera de um ex-exilado até desvendar o paradeiro de sua filha, houve um longo caminho.

“Não tinha noção de como chegar até ele. Tinha o livro (Até o Fim do Mundo – A Caçada a Carlos, o Chacal, o Terrorista Mais Procurado do Mundo, do inglês David Yallop, que cita Perera), mas não conseguia fazer a ponte entre aquele personagem perdido no tempo e no espaço e esse sujeito ou algum parente dele”, lembra Molica.
“A partir do momento que eu localizei a família dele as coisas começaram a andar com relativa facilidade e uma entrevista levava a outra.” O livro, além de ser uma espécie de biografia de Perera é uma aventura quem tem como cenário um período rico da História brasileira, é também um relato jornalístico dos caminhos percorridos por Molica, em que o autor relata segredos de profissão, dificuldades e conquistas na busca pela verdade do personagem.

“A história dele parece uma ficção mal construída, que não tem muita lógica. Não romanceei muito o texto. Fiz questão de colocar várias citações de documentos pra não perder ponto do quesito credibilidade. Perera construiu uma história que fica no limite da verossimilhança”, conta o escritor, autor de Notícias do Mirandão, romance publicado no ano passado.

No livro, a trajetória de Perera (ou Parra) termina com o encontro do túmulo do homem em Bettola, na Itália. e a confirmação por meio de documentos e depoimentos de especialistas que o tal psiquiatra é mesmo é mesmo o advogado que num dia delatava comunistas e noutro abrigava líderes da resistência como Carlos Lamarca. Essa é a tese de Molica, embora ele abra espaço para alguma especulação sobre o destino do personagem. “Ele só foi fiel a si mesmo. Precisava ser vários pra ser fiel a si mesmo. Sempre conduziu sua história com uma firmeza impressionante. Nos momentos em que era derrotado conseguia  dar a volta por cima e se estruturar de outra maneira”, diz Molica sobre o homem  que, nas palavras de “Carlos”,  o “Chacal”,  é (foi?) um patriota
E um líder revolucionário internacionalista.”

RICARDO SABBAG


JORNAL OPÇÃO, GOIÂNIA, 29/11/2003 Goiâna de Pirenópolis foi casada com aliado de Carlos Chacal

O terrorista brasileiro Antonio Expedito Carvalho Perera, que militou na VPR, foi casado com a goiana Nazareth Oliveira. Na Itália, ele era conhecido como o “psicólogo” Paulo Parra

A história da ditadura civil-militar e da resistência pacífica (MDB e PCB) e armada (Am, VPR, entre outras correntes) tem sido contada tanto por historiadores – entre eles, os brasilianistas, como Thomas Skidmore e Alfred Stephan quanto por jornalistas, como Elio Gaspari. Mesmo  tendo sido um acontecimento bem próximo – a ditadura se torna quarentona no próximo ano -, a documentação é farta e, portanto, há registros competentes, não puramente análises ideológicas. Mas há muito por contar e há personagens que sequer foram explorados pela historiografia, exceto, ligeiramente, pelo jornalismo. É o caso do gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera, que começou na direita, como advogado em Porto Alegre, caminhou para a extrema esquerda, em São Paulo, trafegou pelo terrorismo, na França, e morreu na Itália, em 1996, aos 65 anos, Video. Em desgraça em Porto Alegre, Perera muda-se para São Paulo, em companhia da mulher, Nazareth Antonia Oliveira, goiana de Pirenópolis (“Eu me criei no palco. Desde menina eu escrevia peças e atuava na escola e no teatro de Pirenópolis”, conta Nazareth).

O Guerrilheiro –  Em São Paulo, Perera, no início, integrava a Ordem Rosa-Cruz e, segundo Nazareth Oliveira, fazia planos de ingressar na maçonaria. F ernando Molica mostra que o camaleão não muda inteiramente de nome, mas exclui o Expedito, tornando-se apenas Antonio Carvalho Perera e aproxima-se, primeiro como advogado, de militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Sem avisar a mulher, esconde em seu apartamento o principal teórico da VPR, Ladislas (hoje, Ladislau) Dowbor, que usava os nomes de guerra de Nelson e Jamil, Valdir Carlos Sarapu, o Braga, e o capitão Carlos Lamarca, o César. Como advogado, trabalhou com Annina Alcântara de Carvalho (que defendeu o goiano Tarzan de Castro, este também ouvido por Fernando Molica), que, mais tarde, tornou-se sua amante.

Num trabalho de pesquisa primoroso, Fernando Molica sugere que o primeiro contato de Perera com a VPR (grupo que nasceu em 1968) se deu por intermédio do ex-sargento do Exército Onofre Pinto (personagem da guerrilha que merece um livro à parte, por ser mais misterioso do que o Cabo Anselmo, de quem era amigo). As fontes do jornalista são, nesse caso, Valdir Sarapu, Roberto Cardoso Ferraz do Amaral, Diógenes Oliveira, Maria do Carmo Brito e Renata Ferraz Guerra de Andrade. No) começo, Perera era simpatizante da VPR, mas não um militante.

“A análise dos processos arquivados no STM reforça a versão de que Perera não era um integrante da VPR, pelo menos até seu banimento do Brasil, em janeiro de 1971 “, escreve Fernando Molica. Izaías do Vale Ahnada garante que ele era um colaborador da corrente guerrilheira.

Fernando Molica mostra que, embora enfrentasse forças policiais organizadas e muito bem armadas, o improviso substituía o planejamento na guerrilha, o que prova a seguinte história: “Um dos homens mais procurados do país, Lamarca se viu obrigado a sair do prédio da Rua das Palmeiras, em Santa Cecília [em. São Paulo], agachado no banco traseiro do fusca ao lado de [JoaquÍm] Câmara Ferreira, um dos dirigentes máximos de outra organização guerrilheira [a Ação Libertadora Nacional]. Ambos cobertos por travesseiros e almofadas”. “Ficamos rodando por quatro horas, das dez da noite às duas da madrugada, para saber onde iriamos colocar o Lamarca”, conta Benedicta Savi, a Ditinha. No final, Lamarca ficou escondido no apartamento da atriz Lilian Lemmertz (mãe da atriz J úlia Lemmertz, que faz o papel de Noêmia, na novela Celebridades). Perera, já então uma espécie de “advogado oficial” da VPR, também escondia seus militantes, principahnente os ex-militares, como Onofre Pinto. “Em fevereiro [de 1969], dois outros homens são mobilizados para garantir a segurança de Onofre e seus companheiros: o capitão reformado do Exército Afonso Cláudio de Figueiredo, que servira com Lamarca em. 1962, no mesmo quartel de Osasco, e Antonio Expedito Carvalho Perera”, aponta Fernando Molica. Mais tarde, “decidiu-se então que Lamarca e Onofre não voltariam. para o esconderijo de Santo Amaro: seriam levados para outro endereço, para o apartamento 61 do edifício Buriti, onde Perera vivia com a  família. Apartamento que deixara de ser uma típica residência de classe média para transformar-se em um aparelho da VPR, local de abrigo para alguns dos homens mais procurados do país. Perera rapidamente evoluíra da condição de advogado para a de simpatizante e, depois, para a de colaborador da organizaçã “.

Em março de 1969, Onofre Pinto deixa o apartamento ele Perera e sai para um encontro com Diógenes de Oliveira, o Luís, e é preso. “Eu vi ele sendo preso”, relata Ladislas Dowbor.

Diógenes (como Roberto Cardoso Ferraz do Amaral) já estava preso e abrira o ponto. Perera, Lamarca, Sarapu e Ladislas tentam resgatar o companheiro, mas não conseguem. Na madrugada, soldados do Exército invadem o apartamento de Perera. (Os militares levaram Onofre Pinto, que estava ajoelhado e muito machucado. Ele havia sido torturado por mais de 12 horas seguidas. Demorou a abrir a informação do apartamento para possibilitar a fuga de Lamarca e Perera. No quartel do exército, Nazareth “é recebida com um murro. Ao levantar-se, leva outro soco, e mais outro. E chamada de comunista, de terrorista, de puta”. A mulher de Perera, que nem sabia que César era Lamarca, “leva choques por todo o corpo. Como se recusasse a dar uma pista do paradeiro daqueles dois homens [Perera e Lamarca], é colocada nua e, em seguida, pendurada de cabeça para baixo – seus tornozelos tinham sido amarrados a cordas que pendiam de roldanas presas no teto”, diz Fernando Molica.

O relato de Nazareth: “Num dado momento vi o Waldemar, digo, Onofre, se aproximar, rastejando, nu, com as mãos algemadas para trás, pois não conseguia ficar de pé, de tanta tortura que sofrera, chegar perto de mim e dizer: ‘Ela é inocente, vocês estão fazendo a pior injustiça com essa senhora. Eu sou culpado, mas ela não’. Imediatamente, Um dos caras deu-lhe um pontapé e o atirou longe dali, como não se faz a um cão”.

Mesmo intensamente procurados, Perera e Lamarca, depois de dormirem na casa dos pais do advogado, vão para o manjadíssimo escritório do primeiro. Lamarca sai primeiro e escapa. Perera é preso e levado para a Polícia do Exército. Seu relato ao Conselho Permanente da 2a Auditoria da 2a Região Militar, em 1970, quase um ano depois: “(…) que foi levado à PE, onde encontra Augusto [Onofre], nu e pendurado num canto, com a cabeça para baixo, e tendo vários fios ligados ao corpo; que, sem qualquer interrogatório prévio, o interrogando foi despido, molhado, e colocado no lugar de Augusto, ao mesmo tempo ern que apanhava e sofria choque elétrico; que após cinco horas de sevícia, o interrogando perdeu os sentidos e foi posterÍormente socorrido pelo sargento Verdramine, que o tratou muito bem (…)”. Ele foi torturado por Brito, Perrone, Caetano, Vam1or, Piere Braga, capitão Pivato, tenente Agostinho e o delegado Quoaiss.

Os torturadores introduziram “um cassetete eletrizado no ânus” de Perera. O advogado foi torturado, numa das vezes, na frente de sua mulher, que o chamava de Tônio.

Fernando Molica conta que, “mesmo sob tortura, Perera pouco falou”. Mas acrescenta que ele sabia muito pouco das entranhas da VPR. Há suspeitas de que Perera tenha sido inflltrado na guerrilha, mas Fernando Molica apresenta depoimentos que não sustentam a tese. “Vi o cara ser trazido, carregado para a cela. Quebrado, torturado, Com o rosto inchado.Fui testemunha ocular da história e ele resistiu bravamente à tortura. Não consta que ele tenha falado”, afitma Diógenes de Oliveira. Outra versão, de Alfredo Sirkis: “Não era muito politizado, não tinha uma história na organização, era rnalvisto. Tinha gente que achava que ele era da ClA”.

Por que Perera, um homem de comportamento aristocrático, que fumava cachimbos ingleses e pretendia ser o Onassis brasileiro, aderiu à guerrilha? É um mistério que Fernando Molica não desvenda, mas aponta Um caminho, baseado num depoimento do ex-sargento Darcy Rodrigues: “Para ele [Darcy], Expedito buscava posicionar-se para garantir um lugar de destaque entre aqueles que representavam uma ‘alternativa de poder no Brasil”‘. Como a ditadura não o quis, acusando-o de corrupto, Perera saltou para a esquerda.

Com base num depoimento de N azareth Oliveira, entrevistada em Pirenópolis e Nova York, Fernando Molica relata que Perera manteve envolvimento com falsificadores de dólares.”Ele [Perera] era o doleiro do Onofre”, conta José lbrahirn, que militou na “VPR e foi presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco. “Quem controlava o Expedito era o Onofre”, sustenta Quartim de Moraes, que foi expulso da VPR.

No presídio Tiradentes, Perera torna-se muito próximo do historiador Caio Prado Júnior, autor do célebre livro História Econômica do Brasil e dono da Editora Brasiliense. “Ele parecia um grande burguês. Ficava de robe de chambre, fumava um cachimbão, gostava de passear com uns chinelos folgados”, diz lzaías Almada. No presídio, Perera aproxima-se afetivamente da advogada de presos políticos Annina Carvalho (belga de nascimento).

Em dezembro de 1970, o embaixador suíço Giovani Enrico Bucher é seqüestrado pela VPR. Perera figura na lista da VPR para ser banido. “Eu nunca mais tive notícias dele. Ele foi para o Chile na época do [Salvador] Allende”, diz Nazareth Oliveira, que tem uma filha com Perera, a bailarina Teresa Cristina. No Chile, Perera continuou envolvido com a VPR, corn o grupo de Onofre Pinto, o amigo do Cabo Anselmo (que traiu os companheiros, passando para o lado do delegado Sérgio Paranhos Fleury).

No Chile, ele convence Onofre Pinto a, digamos assim, nomeá-lo como “embaixador” da VPR na Europa. Ele recebe Uina carta de Yolanda Cerquinho da Silva Prado, a Danda Prado hoje, editora da Brasiliense – convidando-o para morar em seu apartainento em Paris. Perera e Danda Prado se tornam, rapidamente, um casal: A advogada Annina ficou enciuinada, mas Perera manteve o romance com Danda. A filha de Caio Prado Júnior revelou a Fernando Molica, em 2002, que o grupo de Perera chegou a propor o justiçamento de Annina. Embora não quisesse voltar para o Brasil, Perera e seu guru Onofre Pinto defendiam a volta dos banidos. “Ele [Perera] era considerado um dos responsáveis pela vinda da Pauline Reichtsul. Convenceram a moça a vir para o Brasil. Ele [Perera] armou isto”, diz Luiz Alberto Sanz, ex-integrante da VPR. Perera “foi um dos que ocultaram informações sobre o Anselmo”, garante Luiz Sanz.

Pauline Reichtsul, delatada pelo Cabo Anselmo, foi assassinada em Pernambuco.

Danda Prado contou a Fernando Molica que, “apesar de não trabalhar”, Perera “não se queixava de falta de recursos”. “Os dólares roubados da casa de Santa Teresa [o dinheiro era do político Adhemar de Barros] proporcionariam a Perera uma vida confortável. Segundo Quartim de Moraes, o ‘lado mundano’ do exílio parisiense do representante internacional da VPR se tornou notório na comunidade de brasileiros”, conta Fernando Molica. “Nas viagens, ele sempre ia de primeira classe”, atesta Danda Prado. “Ele era extremamente fechado, mas muito sedutor no contato pessoal”, acrescenta Danda Prado. “Ele [Perera] planejava matar Delfim” [Netto, então mÍnistro da Fazenda], revela a filha de Caio Prado Júnior.

Em 1972, por intermédio de Armênio Guedes, Perera se aproxima do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão.

“Demonstrou vontade de deixar a ultra-esquerda e vir para o partido”, disse Armênio Guedes a Fernando Molica. No Chile, para onde viajava sempre, conheceu o jornalista francês Francis Pisani, que o teria apresentado a grupos terroristas. Perera foi muito bem recebido por parte da esquerda. “Ele chegou na Europa como infiltração”, diz Mauro Leonel Junior. Em 1972, Uma facção da VPR propôs seu justiçamento, segundo Vera Sílvia Magalhães.

O Terrorista – A partir de 1973, Perera afasta-se dos brasileiros e começa a conversar com grupos árabes e palestinos.Como não falava francês nem inglês, Danda Prado era sua intérprete. “Havia um problema de armas”, conta a socióloga. Perera “tinha uma vida dupla”, admite Danda Prado. “Sei que ele teve contato com os palestinos, com o Baader-Meinhoff, com o Exército ‘\1ermelho Japonês”, relata Mauro Leonel. “O sonho deles era a construção de uma internacional guerrilheira.” A versão de Alfredo Sirkis: “[Perera] fez contatos com palestinos, depois, com a esquerda libanesa, chegou a ir para Beirute, que era a capital da guerrilha na época. Havia um pessoal muito mafioso neste processo de luta armada na Europa”. João Carlos Bona Garcia, outro exilado, confirma as ligações internacionais de Perera: “Sei que ele teve contatos com grupos ligados ao Khadafi [Muammar al-Khadafi, que assumÍu o poder na Líbia em 1969]. Quando fui morar na França, em 1975, soube que ele estava ligado a grupos árabes”.

Uma das revelacões mais interessantes do livro de Fernando Molica é que a ditadura brasileira estava muito bem informada sobre os passos da esquerda na Europa, inclusive dos passos de Perera. Inclusive, sobre suas ligações com terroristas japoneses, como Yamada Yoschiaki (cujo pseudônim era Furuya Yutaka). No Livro de Identificação dos Terroristas Japoneses, do SNI, o JRA (que, na página 190, Fernando Molica confunde com o IRA), era apontado como “ligado À Frente Popular para a LIbertação da Palestina”.

Takahasi Takemoto, “provável chefe da rede européia do JRA”, segundo o SNI, contou que “havia recebido armas de um brasileiro chamado Acmene”, na verdade, Perera, que entregou dólares falsificados ao grupo terrorista japonês. O inglês David Yallop garante que a operação para libertar Yoshiaki, em 1974, “foi articulada com os palestinos e contou com as participações de ‘Carlos’ [o Chacal] e de Perera. O ex-advogado da VPR foi, segundo ele [Yallop], responsável pelo transporte das arrnas até a Holanda. (…) Ainda segundo Yallop, Perera foi encarregado do aluguel de um carro que levou dois dos japoneses até a embaixada” invadida, a francesa, em Haia.

A revista francesa Le Point, em 1976, aponta Perera como “o fornecedor de armas”. “Hoje se sabe quem é ele. É um brasileiro seu nome verdadeiro é Perera Carvalho. Ele nunca foi preso”, reporta a revista. No Brasil, o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), em outubro de 1976, apurou: “Antonio Expedito Carvalho Perera, que tem ligações estreitas com o terrorista internacional Illich Ramires Sanches (Chacal), inclusive teria participado de ações de seqüestro, por estar sendo procurado por autoridades policiais francesas, foi obrigado a abandonar a Europa, indo radicar-se em Lima/Peru”. O Cenimar erra u norne do terrorista venezuelano Illich Ramírez Sánchez, Carlos, o Chacal (hoje, com 54 anos), e é improvável que Perera tenha ido para Lima. Carlos-Chacal (que não deve ser confundido com aquele que se tornou personagem do romance de Frederick Forsyth e do filme de Fred Zirmemarm O Dia do Chacal, no qual tenta matar o presidente francês Charles de Gaulle. Este Chacal foi encontrado, na década de 90, no Paraguai, pelo repórter Domingos Meirelles, da TV Globo) aproximou-se da Frente Popular da Libertação da Palestina (FPLP), que era liderada por George Habash e Wadi Haddad. Ele era aliado dos palestinos, do Exército Vermelho Japonês, da Fração do Exército Vermelho da Alemanhar (BaaderMeinhoff) e do Exército Republicano Irlandês.

Audaz, Carlos-Chacal baleou, em 1973, o líder judeu inglês Joseph Sieff, da família proprietária da cadeia de lojas Marks & Spencer. Carlos-Chacal é tido como responsável por entre 80 e 90 mortes. “Detido em 1994, no Sudão, foi condenado em dezembro de 1997 e cumpre prisão perpétua em Paris.” Repórter ousado, Fernando Molica conseguiu entrevistar Carlos-Chacal, por intermédio da advogada Isabelle Contant Peyre, mulher do terrorista. Perguntado sobre Perera, ele diz:

“Nós lutamos pelas mesmas causas”. E esclarece que Perera deve ser visto Como o “sucessor do capitão Carlos Lamarca, ele é um patriota e um líder revolucionário internacionalista”. Uma revista francesa, segundo Danda Prado, “publicou uma reportagem dizendo que Perera era ‘mentor intelectual e espiritual do Carlos”!.

O Psicólogo –  Para não ser preso, Perera foge para a Itália, onde adota novo nome, Paulo Parra, e uma nova profissão a de psicólogo (e psiquiatra) – envolvido com psicocibernética.

Continua na esquerda, mas agora eurocomunista, quer dizer, um comunista moderado (a corrente influenciou, no Brasil, sobretudo o Partidão e seus intelectuais, como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, gramscianos). Numa reunião, em Roma, participaram, ao lado de Perera, os bispos dom Tomás Balduíno (da Cidade de Goiás) e dom Pedro Casaldáliga (de São Félix do Araguaia), da Igreja Católica.

DOm Torn.ás Balduíno contou a Fernando Molica que ficou sabendo que Parra era “meio esquisito, falsário mesmo, havia algumas suspeitas sobre ele”. Paulo Parra hospedava Luiz Carlos Prestes em sua casa, na Itália, segundo Maria Ribeiro, viúva do esquerdista brasileiro.

Fernando Molica revela que Parra era o representante do PCB na Itália, na década de 1980. “Depois da anistia, quando nós voltamos para o Brasil, ele ficou responsável pela organização partidária em Milão”, conta Givaldo Siqueira, ex-dirigente do Partidão. Armênio Guedes, como outras fontes de Fernndo Molica, confirmou que Parra era mesmo Perera. “Ele não fazia muito sigilo sobre o fato de ter sido o Perera. Ter outro nome não era nenhuma anormalidade para nós”, diz Armênio Guedes. Como editor, Parra-Perera publicou as memórias de Gregório Bezerra na Itália, sob o título de I Giorni Dell’Oppressiüne. Memoire 1900-1945.

A operação para revelar a história de Parra-Perera é incrível, mas deixo esta parte para aqueles que querem consultar este belíssim.o livro, que deve causar inveja nos historiadores, tanto pelo rigor quanto pela leveza do texto. Produto de uma pesquisa exaustiva, o livro daria um grande filme. Ao final da história, não se sabe se Expedito Perera-Paulo Parra trabalhou também para a ditadura, como Cabo Anselmo. Tudo indica que a investigação de F ernando Molica não está encerrada e que, corn a publicação do livro, novos fatos podem vir a público. É provável que, talvez numa próxima edição, outros dados sejam divulgados.

EULER BELÉM


JORNAL DO TOCANTINS, 15/02/2005 O Chacal é brasileiro

Disse-me um antigo professor que tive: “A história precisa de um tempo. Cada vez mais me convenço da sabedoria contida nesta frase. Efetivamente, não é no calor dos acontecimentos que se vê a história e nem mesmo esta é feita da maneira que seus personagens desejam. Antes de qualquer coisa é necessário um certo distanciamento crítico, não só no tempo, mas, principalmente, no campo emocional, para que se estabeleça a verdade dos fatos.

Dentro de pouco mais de um mês completar-se-ão 40 anos da instalação do regime militar que governou o País de 1964 a 1985. Foi um período envolto na obscuridade, no qual as forças antagônicas se moviam pelas sombras, e das quais pouca informação emergia. Em todo este período, os meios de comunicação experimentaram extraordinário aumento de seu alcance, e  foram controlados com mãos de ferro, de maneira a que se divulgasse apenas a “verdade dos vencedores”.

Passadas quatro décadas, a história vai sendo desenterrada com todos os seus contornos e começam a surgir alguns personagens e situações até então absolutamente desconhecidos.

Boa parte destas histórias é desencavada dos chamados “arquivos dos porões” por pesquisadores ligados a universidades e organismos de direitos humanos. Outros casos, porém, acabam por alcançar maior relevo e divulgação por serem trazidos à luz pelo trabalho infatigável de profissionais pertencentes a uma classe muito especial: a dos “jornalistas investigativos”.

Estes profissionais, hoje reunidos em associações de âmbito nacional e internacional, são as pessoas por detrás de algumas das grandes reportagens que assistimos na televisão ou lemos  em revistas e jornais.

Realizam um trabalho que muitas vezes beira ao anonimato, se expõem, incomodam muita gente e não raras vezes  acabam pagando alto tributo pela sua luta em busca da verdade – vide o caso de Tim Lopes, assassinado ao buscar uma matéria sobre o tráfico de entorpecentes no Rio de Janeiro.

Fernando Molica é um destes homens; repórter da Rede Globo, conhecido nos meios jornalísticos por suas matérias de impacto social e por vasculhar nos “porões”. E é ele quem nos brinda com mais uma janela que nos permite espiar mais um canto da escura noite dos tempos da ditadura, através de seu livro O Homem que Morreu Três Vezes lançado pela editora Record em 2003.

O livro nos mostra, de maneira empolgante, duas histórias: uma delas narra a trajetória do personagem-título, o advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera, de Porto Alegre a Roma, no período compreendido entre as décadas de 60 e 90; enquanto na outra história, igualmente fascinante, Molica nos faz acompanhar as angústias e alegrias que acompanharam seus afazeres ao levantar a matéria, mostrada em duas reportagens no Fantástico, em dezembro de 1999 e maio de 2002.

Mas qual a origem do fascínio que este personagem exerceu sobre um repórter experimentado, de uma grande rede de televisão a ponto de o fazer editar duas matérias em rede nacional e não contente com isto ainda escrever um livro sobre o assunto?

Convenhamos que não é toda a hora que nos deparamos com um personagem capaz de passar de feroz anticomunista; capaz de denunciar seus adversários comerciais como comunistas em 1964; que anos depois é torturado sem delatar seus “companheiros” da luta armada, e mais do que isto, depois de exilado se une aos setores mais violentos do temorismo internacional, sendo o fornecedor de armamentos a ninguém menos que Ílich Ramirez Sanches, conhecido como Chacal, então o temorista mais procurado do mundo. E que enquanto o Chacal é residente de uma penitenciária francesa, Perera viveu sua velhice na Itália e momeu mansamente numa cama de hospital, de doença, como qualquer homem de bem. E que só teve sua trajetória escancarada graças ao trabalho obstinado de um repórter competente, caso contrário ficaria tudo por isto mesmo.

O livro é leitura obrigatória para todo e qualquer jornalista e estudante de jornalismo, pois além de tudo é uma aula de como se exerce a profissão. No entanto, por sua namativa ágil e prazerosa, em ritmo de aventura, vai agradar a qualquer um que navegar por suas páginas.

PAULO KELLERMAN


JORNAL DO COMERCIO, RECIFE, 22/11/2003 Em livro, a história de um católico fervoroso que ajudou Lamarca

O psicólogo Paulo Parra morreu em março de 1996, em um hospital de Milão, na Itália. Ele foi sepultado no cemitério da cidade de Bettola encerrando uma das mais fantásticas trajetórias de um exilado da ditadura brasileira. PauloParra era, na vertdade, o advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera, que no início dos Anos de Chumbo era um fervoroso católico anticomunista e posteriormente se tornou aliado de uma organização guerrilheira, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de Carlos Lamarca.  Esse enredo aparentemente surreal é uma história verdadeira contada pelo repórter especial da Rede Globo Fernando Molica, 42 anos, em seu novo livro: O homem que morreu três vezes. O livro (Ed. Record, 336 páginas, R$ 38) será lançado hoje, às 19h, durante o Seminário Internacional de Jornalismo Investigativo, no auditório da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap).

Molica foi ‘apresentado’ ao personagem em 98, quando fazia uma reportagem para o Fantástico. O que poderia ter se encerrado com a exibição da matéria se tomou uma pauta constante no cotidiano do jornalista, que continuou pesquisando a vida de Perera. O repórter ouviu mais de 120 pessoas e consultou centenas de documentos no Brasil e na Europa para refazer os passos do brasileiro que chegou a fornecer armas e dar apoio logístico ao terrorista internacional conhecido, como Carlos, o Chacal.

Perera era um funcionário público anticomunista e chegou a denunciar alguns conhecidos no início da ditadura. Passou a ser perseguido e acabou enfrentando uma investigação por fraude. Considerado culpado, ficou desmoralizado publicamente e resolveu abandonar o Rio Grande do Sul. Por ironia do destino, acabou se tornando advogado de militantes da VPR em São Paulo. Acabou sendo preso. Deixou o Brasil e se tomou uma espécie de contato na Europa dos guerrilheiros. Nesse período entrou em contato com o Chacal. .

“Falei com Carlos, o Chacal (que está preso na França), através da advogada dele. O terrorista confirmou ter conhecido Perera e o classificou como um grande líder, o sucessor de Lamarca no movimento guerrilheiro”, conta Fernando Molica.

Além da história de Perera, o livro O homem que morreu três vezes traz bastidores do trabalho de apuração e vários documentos e fotos obtidos por Fernando Molica nos cinco anos que levou para concluir o trabalho.

EDUARDO MACHADO


PRIMEIRA LEITURA, 01/11/2003 A morte e as mortes de Antônio Expedito Perera

Livro reconstitui a transformação do conservador advogado gaúcho Antônio Expedito Carvalho Perera num ícone da esquerda revolucionária brasileira que chegou a fornecer armas para terrorismo internacional

O  abrigo generoso da esquerda brasileira, essa casa de porta sem tranca que hospedou teóricos e executores, carbonários e oportunistas, mestres e sonhadores, deu morada, revela-se agora, à versão morena de um ronin. Batizado Antônio Expedito Carvalho Perera, ele repetiu, sem qualquer matiz ideológico, mas absolutamente adaptado ao destino atávico da luta armada, a saga dos samurais desonrados, que se tornam andarilhos solitários mundo afora. Sua odisséia – solenemente ignorada até hoje nos caudalosos compêndios do terrorismo por aqui – passa por pelo menos seis países e três continentes, atravessa o caminho de alguns próceres da esquerda, e chega ao venezuelano Illich Ramírez Sánchez, ou Carlos, o Chacal, o maior terrorista conhecido até Osama bin Laden.

Perera está de volta em O Homem que Morreu Três Vezes: Uma Reportagem sobre o “Chacal Brasileiro” (editora Record, 335 págs.), minucioso trabalho do jornalista Fernando Molica, que reconstitui os descaminhos e a transformação, mais por circunstâncias do que escolhas, do advogado gaúcho de origem conservadora num fornecedor de armas para o terrorismo em escala planetária. Envolvente, sofisticado, megalômano e, sobretudo, movido por patológica vaidade, Perera queria realmente conquistar o mundo. Não conseguiu mas, numa eloqüente prova da precariedade de algumas organizações fundamentais na história da esquerda, chegou longe demais.

A constatação emerge do maior entre os vários pendores do livro uma entrevista, realizada por fax em outubro de 1999, com ninguém menos que Carlos, o Chacal, hoje cumprindo pena perpétua num presídio nos arredores de Paris. Por meio da advogada Isabelle Countant Peyre, o terrorista falou sobre o parceiro brasileiro. “Sucessor do capitão Carlos Lamarca, ele é um patriota e um líder revolucionário internacionalista.

Nós lutamos pelas mesmas causas”, confirma o terrorista. O Chacal põe a cereja no bolo que é a vida ou as vidas – de Perera, comparada pelo autor do livro às matrioshkas, aquelas bonecas russas que ficam uma dentro da outra. “Ele não queria ser medíocre, e em nenhuma de suas vidas foi medíocre”, diz Molica à Primeira Leitura, referindo-se à divisão que adotou para contar a história.

PRIMEIRO MOVIMENTO  – O chamado primeiro movimento descreve a ascensão de Perera a partir de Porto Alegre, onde nasceu, em janeiro de 1931, e instalou sua banca de advogado. Antes, formou-se no Colégio Anchieta, sob a influência dos pensamentos de Santo Tomás de Aquino. Transformado num religioso daqueles viscerais – por um triz não se ordenou padre -, Perera faz parte da Juventude Universitária Católica (JUC) e, ainda nos anos 50, militava no Partido Democrata Cristão. Em plena Guerra Fria, tinha urticária só de ouvir falar em socialismo e idéias afins. O livro lista episódios em que ele delatou comunistas e destaca sua fúria contra Luiz Carlos Prestes.

Vaidade,  tudo vaidade. Em 1960, o advogado do tentou ser o candidato de seu partido à prefeitura da capital e , com o fracasso, terminou por romper com os sócios no escritó-

rio e companheiros de opção política. No alvorecer do golpe de 1964, ele, funcionário do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, tentou se vingar entregando os desafetos aos militares – era comum o regime de exceção servir para desempatar questões pessoais – mas seus adversários foram mais rápidos na conspiração.

Por causa da fraude numa ata de reunião da Junta Comercial, Perera foi demitido com base no ato institucional que instituiu a  ditadura e, em desgraça, decidiu mudar-se Paulo. Lá, promoveu sutil e fundamental mudança de nome: abandonou o “Expedito”, como era conhecido no Sul, e passou a  assinar Antônio Carvalho Perera.

SEGUNDO MOVIMENTO –  Tem início a viagem sem volta do ronin brasileiro. Começou pelo escritório de advocacia, onde, além de direito comercial, passou a cuidar de casos criminais. Na capital paulista, ele deparou-se – primeiro, com espanto, rapidamente substituído por uma intimidade crescente – com uma mazela quase tão brasileira como a jabuticaba: a corrupção. “Sabe de uma coisa? Lá no Sul, pra gente chegar ao delegado, para comprar… juiz nem fala… a gente vai por um caminho muito sinuoso. Aqui não, é só chegar e, ‘quanto que tu levas, doutor?’ E, se não perguntar, o delegado é que diz: ‘e eu, como é que fico nessa?”‘, contou ele à mulher, Nazareth Antônia Oliveira, em 1965.

A facilidade em desatar nós na baixa burocracia governamental levou até Perera o ex-sargento do Exército Onofre Pinto, fundador da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma das mais ferozes organizações da guerrilha de esquerda no Brasil.

O terrorista estava interessado nos prosaicos serviços profissionais do advogado – não para libertar presos políticos, mas para resolver questões como documentação de automóveis e aluguel de imóveis a serem usados como “aparelhos”. “Onofre foi o grande sustentáculo de Perera na VPR e, por conseqüência, na esquerda”, conta Molica, para quem o encastelamento dos líderes clandestinos levou a avaliações exageradas, como o imenso prestígio do ex-inimigo de comunistas.

Claro que Perera fez sua parte como de resto, em todas as suas vidas -, envolvendo as pessoas na sua teia de relacionamentos. Sem nenhum refinamento ideológico, mergulhou no cotidiano da VPR a ponto de, em março de 1969, esconder, na sua casa, sob o codinome “César”, outra grife da guerrilha: Carlos Lamarca, o ex-capitão do Exército que se tornou um dos terroristas mais procurados do Brasil. O episódio da fuga do desertor é avaliado por Molica como “um absurdo de improviso”. A casa de Perera foi a solução possível numa correria sem planejamento, que passou antes pelo apartamento da atriz Lílian Lemmertz.

Preso e torturado, Onofre acabou entregando o endereço do advogado – e jogando-o definitivamente nas fileiras da esquerda.

Ele e Nazareth. Presa em casa sem saber da nada – para ela, Lamarca foi apresentado como César, um amigo do Sul -, a mulher de Perera, fonte fundamental no livro, foi barbaramente torturada, sem ter noção do que acontecia O advogado teve o mesmo destino dias depois, com uma diferença – apesar da violência muito além do limite humano, ele não falou, o que cristalizou o respeito da esquerda.

Em 1971, veio a salvação: sem jamais ter militado na VPR – nem sequer tinha codinome -, Antonio Carvalho Perera foi um dos 70 presos políticos trocados pela libertação do embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, seqüestrado por organizações guerrilheiras.

Durante os dois anos que passou na cadeia, o advogado ficou famoso por usar robe de chambre e fumar cachimbo. No presídio Tiradentes, em São Paulo, ficou na chamada cela dos lordes, convivendo com emblemas como Caio Prado Jr. Danda, filha do teórico marxista, aliás, pavimentou a ida de Perera, então exilado no Chile (para onde foi, deixando Nazareth e a filha, Teresa Cristina, no Brasil), para Paris. Antes, numa evidência da firmeza de seus objetivos, participou da reunião que decidiu o justiçamento, que acabou não acontecendo, de Annina Alcântara de Carvalho – de quem fora amante na prisão.

Onofre Pinto nomeou o advogado embaixador da VPR no mundo. As coisas finalmente ganhavam o tamanho que Perera sempre quis. Na França, encontrou terreno fértil entre as várias organizações clandestinas que se articulavam por lá. A criação do Front Brasileiro de Informações (FBl, sem o perdão da ironia) por Miguel Arraes, Márcio Moreira Alves e Mauro Leonel Júnior serviu de credencial a Perera, que passou a ter contato com terroristas do planeta inteiro. Outros exilados, como Alfredo Sirkis, jamais entenderam de onde surgiu aquele eloqüente advogado. “Não era muito politizado, não tinha história na organização, era meio playboy”, conta o ex-terrorista, no livro. ”Tinha gente que achava que ele era da CIA.”

Perera não estudou além do necessário para se formar advogado, não era teórico de coisa nenhuma. Tampouco participou, ao longo de sua vida, de qualquer ação armada.

Permaneceu na sombra, concentrado no comércio de armas e em administrar os recursos das variadas guerrilhas nas quais se envolveu, buscando materializar o levante global. “Não dá para ficar tentando revolução nacional, senão vamos repetir o Chile”, costumava repetir, nos encontros que teve com integrantes do Exército Vermelho Japonês, de organizações árabes – e de Carlos, o Chacal.

TERCEIRO MOVIMENTO –  O assassinato de dois policiais franceses pelo venezuelano obrigou o brasileiro a fugir e a iniciar o terceiro movimento, com o cinematográfico requinte da troca de nome. Ao fugir da França para a Itália, “matou” Antônio Carvalho Perera para virar Paulo Parra, psicólogo especializado na inexistente ciência da psicocibernética e chegar ao Partido Comunista Italiano.

Àquela altura, ele já era um mito, status que deu os contornos de praxe à sua morte. As lendas falam de um fuzilamento na Líbia, um atentado no Líbano, histórias sempre rocambolescas, para referendar a fama. Muitos, também, ainda se perguntam se Perera morreu realmente. O livro de Fernando Molica apresenta, na verdade, um ícone da barafunda ideológica que, de novo como a jabuticaba, é endêmica no Brasil. “Se ele fosse famoso, poderia se dizer que alguém está pererando, ao mudar de um lado para o outro”, diz o jornalista de 42 anos, há seis repórter do Fantástico, da TV Globo – onde, aliás, essa história começou, num par de reportagens. “Acho que Perera também é fruto da falta de tradição democrática do país, especialmente da esquerda. O compromisso da esquerda com a democracia é muito recente”, ressalva ele, um estudioso da ditadura militar. E revelador do seu único ronin conhecido.

O que dizem sobre Perera
“Tive a honra de encontrá-lo nossas viagens, no início dos anos 70, Nós lutamos pelas mesmas causas.” – Illich Ramírez Sánchez, Carlos,o Chacal.

“Não era muito politizado, não tinha história na organização, não tinha leitura, era mal visto, era meio playboy. Tinha gente que achava ele ele era da CIA” – Alfredo Sirkis, ex-terrorista, hoje secretário de Urbanismo da Prefeitura do Rio de Janeiro.

“De Antônio Expedito Carvalho Perera aceita-se quase tudo. Era brilhante, culto arrojado, vaidoso, elegante, egocêntrico. megalômano. (…) Alguns dos que com ele conviveram, como Diógenes de Oliveira, ressaltam sua fidelidade e sua coragem mesmo na situação-limite da tortura. (…) De Perera só não se admite a morte. Mais: que ele tenha morrido em uma cama de hospital, vítima de uma doença. A lenda formada em torno de Perera quer para ele urna morte compatível com sua vida, melhor, suas vidas.” Trecho do livro.

AYDANO ANDRÉ MOTTA


OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, 06/01/2004 E BALAIO DE NOTÍCIAS, 4 A 11/01/2004, 11/01/2004 Pequenas descobertas para um grande enredo

Em 1998, o repórter Fernando Molica preparava matéria para o Fantástico, da TV Globo sobre um filme que registrava o embarque, para o Chile, de 70 banidos pelo regime militar, em janeiro de 1971. Ao ver o filme, um dos convidados, Jaime Cardoso, personagem daquele período, identificou um dos banidos, exclamando “olha lá o Expedito”. Molica quis saber quem era o tal Expedito. A partir dessa descoberta inicial, Fernando Molica passou a apurar a história de Antonio Expedito Carvalho Perera, advogado gaúcho que acabaria por se envolver com a luta armada no período da ditadura e, em seguida, com o terrorismo internacional.

Molica foi atraído pela informação de que Perera estivera envolvido em atentados internacionais que estimularam o sensacionalismo da imprensa da época, a ponto de ser rotulado de “Chacal brasileiro”, alusão ao famoso terrorista venezuelano Carlos, o Chacal, notabilizado no romance O dia do Chacal (1973), de Frederick Forsyth, e em duas versões cinematográficas (O dia do Chacal, de Fred Zinnemann, 1963, e O Chacal, de Michael Caton-Jones 1997).

Uma sucessão de pequenas descobertas e acasos impulsionou Molica na direção de um enredo maior, que acabou por revelar não um personagem, mas três, todos vividos por Perera em diferentes momentos da vida. O resultado dessa aventura é agora contado no livro recém-lançado O homem que morreu três vezes (Ed. Record), uma reportagem que envolve o leitor em suspense da primeira à última página, tamanha a carga de emoção e
mistério dessa história fascinante.

“A decisão de fazer o livro surgiu ainda na Itália, no primeiro semestre de 2002, quando viajei para fazer a segunda reportagem para a TV”, conta Fernando Molica. “Lá, vi que seria uma maldade não detalhar a saga do Perera.” Em terras italianas, Perera entrara na pele do psicólogo Paulo Parra, naquela que seria a última persona da saga, apurada com obsessão e persistência dignas dos grandes repórteres.

Repórter especial da TV Globo, Fernando Molica é diretor da Associação Brasileira de  Jornalismo Investigativo (Abraji). Em 2002 lançou seu primeiro livro, o romance Notícias do Mirandão, também pela Record. Jornalista formado pela UFRJ, já trabalhou no Globo e nas sucursais cariocas da Folha de S.Paulo e do Estado de S.Paulo Nesta entrevista, concedida por e-mail, Molica fala, entre outros assuntos do processo de elaboração da reportagem sobre Antonio Expedito Carvalho Perera e do seu fascínio pelo personagem.

Antes de O homem que morreu três vezes, você já havia escrito o livro Notícias do Mirandão. Em que sentido aquele primeiro livro o preparou para escrever a história de Antonio Expedito Carvalho Perera?

Fernando Molica – Acho que apesar de Notícias do Mirandão ser um romance, o fato de ter escrito um primeiro livro ajudou na estruturação do segundo, na definição de uma linha narrativa, na busca de uma maneira supostamente interessante para contar a história. Espero que tenha ajudado.

Como você delineou a estrutura desse novo trabalho? Você escrevia à medida que ia se inteirando das informações ou sentou para elaborá-lo ao se dar conta de que já tinha a história nas mãos?

F.M. – O método foi meio esquisito. Inicialmente, no segundo semestre de 2002, escrevi um esboço do livro com base nas informações que havia apurado para fazer as duas reportagens para o Fantástico. Havia, claro, muitas informações inéditas, que não consegui, por questão de tempo, incluir nas matérias. Por sorte, eu havia guardado as fitas brutas da primeira matéria.
Depois de escrever esta primeira versão, fiz uma nova rodada de entrevistas e uma nova busca de documentos. Inicialmente, achei que o trabalho desta segunda fase seria pequeno, mas acabou se tornando imenso, as informações que foram sendo coletadas me obrigaram a, praticamente, reescrever o texto. A decisão de escrever o livro surgiu ainda na Itália, no primeiro semestre de 2002, quando viajei para fazer a segunda reportagem para a TV.Lá, vi que seria uma maldade não detalhar a saga do Perera.

Embora se trate de uma grande reportagem, o livro pode ser lido como um bom romance cujo thrilling prende a atenção do leitor da primeira à última página. Sabemos que o flerte do jornalismo com a literatura foi exercitado à exaustão pelo chamado new journalism. Em sua opinião, até que ponto o jornalismo pode se valer das técnicas literárias, e vice-versa?

F.M. – Acho muito difícil fazer uma separação estilística, do tipo isto aqui é jornalismo, aquilo é literatura. O intercâmbio de técnicas, de recursos, é inevitável – no livro, chego até a levantar uma comparação entre a estrutura de uma reportagem para a TV com a normalmente usada na ficção. Creio que o mais importante é a definição do que se quer – e, a partir daí, trabalhar com os recursos e os limites de cada projeto. Quando escrevi um romance procurei, claro, dar verossimilhança à história. O tempo todo me perguntava se aquela história poderia ser publicada em jornal caso tivesse acontecido. No romance, a vantagem é que podemos usar recursos descritivos para se criar esta sensação de verossimilhança. No caso de O homem que morreu três vezes, minha preocupação era provar que a história do Perera, apesar de ser quase inacreditável, tinha ocorrido, era tudo verdade. Neste caso, o texto jornalístico se transforma em documento, em referência, não dá para falsear dados, inventar situações e climas.
Tenho que ser absolutamente fiel ao que apurei – eventuais erros e deslizes não são, portanto, propositais. Fiz questão de não romancear nada. Não inventei nenhum diálogo, procurei citar as fontes de todas as informações. Claro que procurei dar um ritmo agradável à narrativa, gerar algum tipo de expectativa no leitor, mas, em momento algum abri mão do compromisso jornalístico e documental do trabalho.

Na apuração para escrever o romance não-ficção A sangue frio, Truman Capote acabou por se envolver emocionalmente com os criminosos da história. Até que ponto você se deixou impressionar pelo personagem Antonio Perera?

F.M. – A relação emocional com o personagem é inevitável. Independentemente de um julgamento político e moral do personagem – do qual procurei fugir, cada um que tome sua decisão -, sou obrigado a admitir que fiquei fascinado pelo sujeito.  O cara é um personagem maravilhoso, por suas contradições, por sua ousadia, e mesmo por sua cara-de-pau. Isto fica explícito no último capítulo do livro.

O livro se encerra com a constatação da morte do advogado Perera em sua terceira vida na pele do psicólogo Paulo Parra. O que você sentiu ao chegar a essa conclusão? Acreditou de fato que ele estava morto? Gostaria de ter continuado com a história?

F.M. – Claro que, como jornalista, preferiria que ele estivesse vivo. Adoraria entrevistá-lo. Mas a morte dele está explícita em documentos e em depoimentos. Está, portanto, comprovada. Mas admito que a trajetória do personagem, sua chamada vida pregressa, permita especulações sobre o fato de ele ter morrido ou não. Mas são especulações, não há nada que, documentalmente, permita essa possibilidade. Se há, não descobri. Quanto a continuar com o caso: acho que nunca vou me livrar do Perera, espero ainda apurar mais histórias sobre ele.Talvez o livro ajude nessa tarefa.

Aqueles momentos dos anos de chumbo no Brasil foram pródigos em personagens (muitos inclusive ainda estão aí para contar a história) que viveram com toda paixão a causa revolucionária de uma forma, digamos, ortodoxa. Você acredita que Perera foi único em sua trajetória, ou o período ainda poderia revelar tipos tão interessantes quanto ele?

F.M. – Até prova em contrário, o Perera foi o único brasileiro a se envolver de forma direta e contínua com o terrorismo internacional dos anos 60 e 70. Já ouvi falar de outros casos mais ou menos semelhantes, ainda que menos rocambolescos, mas não obtive qualquer pista mais razoável. O período foi muito radical, de muitas paixões. Muitas loucuras foram feitas, mas muitas feridas – principalmente na Europa – continuam abertas, o que dificulta a pesquisa, histórica.

Você teve algum tipo de feedback por parte das pessoas entrevistadas no livro após a publicação, dos parentes de Perera, por exemplo, em especial a filha Cristina e a ex-mulher Nazareth?

F.M. – Até agora, o retorno foi muito positivo, tanto de ex-amigos (e mesmo adversários) do Perera, quanto de pessoas como a Nazareth e a Cristina. Não sei se elas conseguiram terminar a leitura – ambas me disseram, há mais de um mês, que estavam com um certo medo de ler o livro que, afinal, mexe com questões pessoais muito delicadas.

Uma das críticas feitas ao livro refere-se ao seu, digamos, making of, ao fato de você ter entremeado a narrativa com as etapas do processo de apuração. Como você observa essas críticas?

F.M. – Esta característica do livro foi vista com reservas em algumas resenhas e elogiada em outras. Achei que seria interessante contar bastidores da apuração, não vi como separar uma história da outra. Mas, claro, o que sustenta o livro é a história do Perera, ele é o objeto de todo o trabalho. A análise de um livro tem muito de subjetividade, é inevitável. Cada um lê o livro de um jeito. Acho a discussão muito estimulante, é fundamental para o autor.

Você migrou, por assim dizer, do jornalismo escrito para a linguagem da TV. Como se deu essa adaptação?

F.M. – Foi difícil em alguns aspectos, interessantíssima em outros. A TV obriga a um trabalho mais relacionado com as imagens e com personagens. Creio ter aprendido muito – e espero não ter desaprendido nada… Acho que mesmo no livro há algumas passagens em que uso recursos tipicamente televisivos, como uma espécie de colagem de pequenos depoimentos, de “sonoras”, no jargão da TV.

Como você analisa a perda de fôlego da grande reportagem no jornalismo praticado hoje no Brasil, o encolhimento dos espaços e, por conseqüência, do próprio texto jornalístico?

F.M. – Há poucas semanas saiu na Folha de S.Paulo uma resenha muito interessante sobre o novo livro [Queda Livre, Companhia das Letras] do diretor de redação do jornal, o Otavio Frias Filho. O livro é composto de grandes reportagens ou ensaios, narrados na primeira pessoa. Pelo menos duas das reportagens haviam sido publicadas antes numa revista mensal. Mas o resenhista – se não me engano, citando o próprio Otavio – admite que este tipo de reportagem/ensaio não teria espaço no jornal dirigido pelo autor dos textos. Não tem muito jeito: o papel é caro, o tempo do leitor de jornal é curto, o mercado atravessa uma bruta crise.

No Brasil, verificou-se um boom do livro-reportagem nos últimos anos. Você acredita que essa pode ser a saída para o aprofundamento da informação e para o desenvolvimento de um trabalho com menos amarras, por parte daqueles jornalistas mais talentosos?

F.M. – Talvez seja uma das saídas. Como foi dito anteriormente, os espaços são cada vez menores e a obsessão por uma informação mais exata e detalhada é, cada vez, maior. O problema é que reportagens de maior fôlego necessitam de mais tempo e de mais dinheiro. E existe aí a dificuldade para conciliar estas necessidades com os orçamentos limitados do mercado editorial brasileiro. .

Você já tem planos para um novo livro?

F.M. – Tenho algumas idéias e correspondentes angústias, mas nada ainda definitivo. Confesso que estou com muita vontade de voltar à ficção.

PAULO LIMA É ESTUDANTE DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE TIRADENTES (SE) E EDITOR DO BALAIO DE NOTÍCIAS


DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 22/11/2003 Livro refaz passos do Chacal brasileiro

Vida do ex-alcaguete é narrada em tom de reportagem

É possível um homem de extrema direita mudar radicalmente de posicionamento e passar a lutar pelos ideais revolucionários, a ponto de ser acusado de subversivo? Conhecendo a trajetória do advogado gaúcho Antônio Expedito Carvalho Perera, vê-se que o homem pode, sim, ser uma espécie de camaleão. Quando o repórter da Rede Globo, Fernando Molica, pesquisou esses fatos para uma reportagem especial do Fantástico, ficou fascinado e começou a escrever o livro O Homem que Morreu Três Vezes – Uma Reportagem sobre o Chacal Brasileiro (editora Record). A obra será lançada hoje, às 22h, na Universidade Católica de Pernambuco, no Seminário Internacional de Jornalismo Investigativo. Na década de 60, o advogado colaborou com o golpe militar, dedurando pessoas e escrevendo artigos contra o comunismo. Quatro anos depois, foi demitido do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul, acusado de falsificar documentos. Mudou-se para São Paulo, retomando as atividades como advogado. Ocorreu, assim, o que o autor considerou a primeira “morte” do personagem.

Foi o início da grande virada. Ele passou a omitir o primeiro nome apresentando-se como Perera. Para resolver questões processuais, começou a se envolver com a guerrilha, defendendo esquerdistas. Ao constatar as torturas de estudantes e outras atrocidades, decepcionou-se com a ditadura. Nessa época, o já simpatizante da organização Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) escondeu Carlos Lamarca no próprio apartamento e teve o endereço revelado. Entrou então para a lista dos perseguidos políticos.

Preso e torturado, Perera foi banido do Brasil e exilou-se no Chile. Lá abriu-se caminho para sua aproximação com as organizações terroristas internacionais. De lllich Ramírez Sánchez, Carlos – o Chacal ( homem mais procurado pelos serviços secretos nos anos 70 e 80), foi companheiro de luta, fornecendo-lhe armas.

Em 1975, quando Chacal matou dois policiais franceses, Perera, mais uma vez, precisou sumir do mapa, “morrendo” pela segunda vez. Reapareceu na Itália, iniciando outra fase, agora adotando o nome de Paulo Parra. Com a nova identidade, mostrou mais um lado excêntrico, passando-se por psicólogo e atendendo como tal. “Ele inventou a psicocibernética e foi muito respeitado em Milão, fundando, também, uma organização internacional contra a tortura”, ressalta o autor, em entrevista por telefone. Morando nessa região, teve a terceira (e real) morte, em 1996, por motivos naturais.

Para apurar todas esses dados, Molica já teve, de cara, um problema: o material encontrado no livro Até o Fim do Mundo, de David Ya1lop, que fala sobre Carlos Chacal. Nele, Perera é citado, entretanto o nome dele é escrito com “i”. “Isso me atrapalhou muito, pois há várias pessoas com a mesmo nome e, como a atuação dele na guerrilha do Brasil foi restrita, pouca gente o conhecia. Consegui informações na comissão dos desaparecidos políticos. Daí, encontrei a ex-mulher e a filha de Perera em Nova York e a matéria começou a andar”, explica.

MARIA EDUARDA ANTUNES


TRIBUNA DO BRASIL, BRASÍLIA, 01/04/2005 A lenda do Chacal brasileiro

O homem que morreu três vezes, livro-reportagem do jornalista Fernando Mollca, tenta lançar alguma luz sobre a trajetória do terrorista Antonio Perera

O homem que morreu três vezes, livro-reportagem do jornalista Fernando Mollca, tenta lançar alguma luz sobre a trajetória do terrorista Antonio Perera

Parece enredo de cinema americano, mas a trajetória do advogado gaúcho Antonio Expedito Carvalho Perera, de anticomunista ferrenho a aliado da esquerda revolucionária, até fazer parte do que havia de mais agressivo no terrorismo Internacional nos anos 70 como um dos principais colaboradores do terrorista venezuelano conhecido como “Carlos”, o “Chacal”, existiu, de fato, e é contada em detalhes pelo jornalista Femando Molica no livro O Homem Que Morreu Três Vezes, que acaba de ser lançado pela editora Record.

Morto em 1996, sob a identidade italiana de Paulo Parra, na cidade de Milão, após dois atestados de óbitos, o protagonista de uma das mais singulares histórias já vividas por um homem tem agora o mito desnudado. “Os bastidores da ditadura sempre foi um lema que gostei. Numa matéria realizada para o Fantástico sobre o assunto, fiquei atraído com a originalidade do fato de um brasileiro estar envolvido com atentados que chocaram o mundo, um brasileiro que teve participação ambígua durante o regime. Até então, nunca tinha ouvido falar deste sujeito, foi uma surpresa. Fiquei tão entusiasmado coma história que achei que merecia um livro”, revela Molica, repórter especial da TV Globo desde 1996.

Depois da primeira matéria para o Fantástico em dezembro de 1999, foi feita uma segunda, realizada quatro anos depois, em maio de 2002, No intervalo entre uma e outra, Fernando Molica reuniu material suficiente para dar o ponta pé inicial no projeto. “Em meio à apuração desta segunda reportagem, percebi que o material coletado e as condições em que isso vinha sido feito poderiam render mais uma incursão à história de de Perera”, avalia o jornalista, que entrevistou cerca de 120 pessoas no Brasil, Holanda, França, Itália e Estados Unidos.

Como as matérias para a televisão eram voltadas principalmente para a atuação de Perera na Europa, após o período de exílio nos anos 70, Molica se viu obrigado a reconstituir a fase inicial da vida do personagem, no Rio Grande do Sul, sua terra natal, e em São Paulo. Levou pelo menos um ano para levantar os primeiros indícios num verdadeiro trabalho de investigação. “Acho que todo processo de garimpagem, de descoberta é emocionante. Perera foi um personagem original dentro do regime militar e seguiu tendo uma vida singular durante o exílio. Foi um fantasma bem esperto, um grande ficcionista que fez de sua vida um grande romance”, constata.

Molica prefere c1assificar a obra como livro-reportagem e não como uma biografia. “O livro surge como uma espécie de reportagem sobre a reportagem, dentro do trabalho que eu já havia começado na TV. Uma biografia se mostra mais completa e ainda há passagens da vida de Perera que  são obscuras”,  avalia o jornalista.

Autor do romance Noticias do Mirandão, lançado em 2002, também pela Editora Record, Molica diz que escrever O Homem Que Morreu Três Vezes foi uma grande aventura. Entre os momentos marcantes desta empreitada, ele destaca a emoção dividida com a filha de Perera, Cristina, que estava desde os anos 70 sem saber do paradeiro do pai e manteve um último contato por meio de carta. “Dividimos as mesmas ansiedades e angústias a cada informação nova sobre o Perera”, lembra Molica.

Ele não esconde o fascínio em torno do mito criado sobre o Chacal brasileiro. “Quando você não tem informação, fica a lenda. É uma história muito improvável de ter acontecido, portanto tive muito cuidado em revelar as fontes para provar que ela aconteceu. Assim como tive cuidado em provar que Perera e Parra foram as mesmas pessoas”, afirma Molica.

LÚCIO FLÁVIO


VEJA, RADAR, 22/10/2003 "Fui eu"

O ex-preso político Flávio Tavares foi o portador do dinheiro que “comprou” a fuga do cabo Anselmo da delegacia onde ele estava preso no Rio de Janeiro, logo depois do golpe de 1964. A liberdade do ex-líder dos marinheiros, que anos depois, se transformaria no célebre traidor da esquerda brasileira, custou 100 dólares. A constrangida confissão de Tavares está em O homem que morreu três vezes, do jornalista Fernando Molica, que será lançado no fim do mês. O livro contra a história de Antonio Expedito Perera, um exilado brasileiro que acabou aliado ao terrorista Carlos, o “Chacal”.


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Choro

Em quase sete anos de casamento, Nazareth jamais presenciara uma cena como aquela. Seu marido, Antonio, um bem-sucedido advogado e funcionário público de 33 anos, chora deitado sobre seu colo. Era a primeira vez que via aquele homem austero e tão seguro de si deixar-se vencer por algum tipo de contrariedade. Naquela manhã de outubro de 1964, na casa da rua Pirajá, no bairro de Ipanema, em Porto Alegre, Antonio, em lágrimas, parecia admitir que, pela primeira vez, fora derrotado. Como no samba-canção composto por Maysa, caíra o mundo daquele advogado especializado em direito comercial, congregado mariano, militante do Partido Democrata Cristão, o PDC. A sentença que definia a queda estava ali, sete linhas em forma de decreto publicadas no canto inferior direito da página 6 da edição de 8 de outubro de 1964 do Diário Oficial do Rio Grande do Sul:

O governador do Estado do Rio Grande do Sul, no uso de suas atribuições e tendo em vista o que consta no processo GG/12.001/64, resolve demitir o Assessor Técnico do Tribunal de Contas, à disposição da Junta Comercial, bacharel Antonio Expedito Carvalho Perera, como incurso em sanção prevista no artigo 7º, § 1º, do Ato Institucional, de 9.4.1964, regulamentado pelo Decreto nº 53.897, de 27.4.1964, e de acordo com a Resolução nº 140 da Comissão Estadual de Investigação. Palácio Piratini, em Porto Alegre, 8 de outubro de 1964. Ildo Meneghetti Governador do Estado

Naquele momento, Perera via-se acuado, sem alternativas. Em abril de 1964 jogara uma cartada decisiva, um jogo quase que marcado, de vencedor praticamente definido — ele. Em um só lance conseguiria vingar-se de ex-companheiros e alcançar uma posição ainda superior àquela que, em tão pouco tempo, conseguira chegar. Não haveria como errar. Mas ele subestimara seus adversários, confiara demais em sua capacidade de definir o resultado de uma disputa. Errara na dose. Em prantos, agarrado à mulher, ele a ouvia dizer o que já sabia:

— Você errou, Antonio. Você não podia ter feito o que fez. O decreto que demitiu Antonio Expedito Carvalho Perera era mais um das centenas assinados pelo governador, a partir de abril de 1964, com base no Ato Institucional baixado pelo governo militar que tomara o poder a partir da deposição do presidente João Goulart. Durante meses, os cidadãos gaúchos — em um processo que se repetia no nível federal e nas outras unidades da federação — acostumaram-se a ver publicados no Diário Oficial os nomes dos indesejados pela nova ordem. Uma lista ampla, nela cabiam comunistas e simpatizantes de outros partidos de esquerda, corruptos ou suspeitos de atos de improbidade administrativa e até simples adversários de quem acabara de assumir o poder. Independentemente do instrumento encontrado para definir a punição — demissões, aposentadorias compulsórias —, vulgarizou- se a utilização do verbo cassar, que de início definia a retirada de mandatos obtidos pela via eleitoral. Cinco páginas e meia da edição em que foi anunciada a demissão de Perera foram ocupadas pela publicação de medidas semelhantes. Alguns decretos justificavam as demissões ou aposentadorias compulsórias pelo fato de o funcionário “ter tentado contra o regime democrático”. O ímpeto moralizante do novo governo definiu os cassados em dois subconjuntos, formados por “subversivos” e por “corruptos”. O bacharel Antonio Expedito Carvalho Perera, funcionário público concursado, ficaria entre estes últimos. Sua cassação se dera ao fim de uma investigação sumária destinada a apurar irregularidade supostamente cometida no exercício da função de assessor jurídico da Junta Comercial. Ele fora acusado de ter falsificado a cópia de uma ata da assembléia dos cotistas da empresa Lojas Video Ltda. ocorrida no dia 8 de março de 1963. A cópia da ata arquivada na Junta Comercial era diferente da que fora publicada no Diário Oficial. Perera, além de cotista da empresa, era seu procurador e atuou como secretário da tal assembléia.

O escândalo da suposta falsificação da ata foi tema de debates na Câmara Municipal, chegou às páginas de jornais como o Correio do Povo.¹ O governo gaúcho determinou a investigação do caso. Em 30 de setembro de 1964, Perera encaminhou sua defesa à Comissão Estadual de Investigação, CEI: 31 páginas com sua argumentação e mais 136 com o que chamou de “provas documentais”, um histórico de sua atuação como funcionário público e como líder político, cópias de artigos publicados em jornais gaúchos e de documentos das Lojas Video Ltda.² Argumentou ser vítima de perseguição de origem política e afirmou que a suposta falsificação não passara de um equívoco burocrático: faltava uma página na cópia da ata enviada para a Junta. Mas, seis dias depois, a CEI divulgaria sua Resolução nº 140: Perera foi considerado culpado e sua demissão, sugerida ao governador do Estado. ³

A derrota e a humilhação seriam determinantes para traçar os caminhos que, a partir dali, iria percorrer. Antonio faria da tragédia um ponto de partida para aventuras que o levariam a situações inimagináveis. Sua trajetória iria marcar e surpreender aqueles com quem convivera em Porto Alegre. De um jeito ou de outro, aos tropeços, ele construiria uma história original, feita de sucessivas negações e afirmações, em que o passo anterior em nada indicaria o seguinte. Em todos os momentos, conservaria marcas essenciais de sua personalidade: a capacidade de sedução, a vaidade, a busca por um lugar de destaque.

Sua ascensão por um caminho conservador tinha sido travada por um erro de cálculo, avaliara mal o seu cacife, suas cartas eram muito inferiores ao blefe que anunciara. Nas rodadas seguintes, que se estenderiam por mais de três décadas, ele mostraria que aprendera uma parte da lição. Cometeria novos erros, mas não voltaria a perder todas as fichas. O jogo tinha que continuar. Atacar pela direita ou pela esquerda era apenas uma decisão tática, um detalhe em direção ao objetivo maior, a vitória. Ele se revelaria um jogador incansável e, como se passaria a dizer anos depois, polivalente.

¹ Correio do Povo, 21 e 22/5/1964.
² Processo arquivado no Arquivo Público do Rio Grande do Sul
³ Processo arquivado no Arquivo Público do Rio Grande do Sul.

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