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Mágoas na geladeira*


Por Fernando Molica em 05 de junho de 2023 | Comentários (0)

Formado na escola da negociação sindical, dono de uma visão pragmática da política que por diversas vezes supreendeu e irritou aliados, o presidente Lula (PT) tem demonstrado que, mesmo com a volta por cima dada em 2022, não superou mágoas geradas por sua prisão. Desde sua vitória, parece se inspirar no ex-presidente Itamar Franco que, segundo o também ex-presidente Tancredo Neves, conservava mágoas na geladeira.

As palavras que escolheu para justificar a injustificável defesa de Nicolás Maduro revelam que Lula tratou, principalmente, de acusar aqueles que tanto o criticaram e, mesmo, o perseguiram. Falou em narrativas, em versões falsas divulgadas e sendimentadas pela imprensa, comparou o caso do presidente da Venezuela ao seu. Na ânsia de desancar seus adversários, o presidente cometeu o desatino de se comparar com um político que conduz uma ditadura.

Lula tem o direito de criticar a Lava Jato, de questionar a atuação do Ministério Público, da Justiça e de boa parte da imprensa. Teve direitos políticos suspensos, foi condenado e preso ao fim de uma investigação que, como tardiamente reconheceria o Supremo Tribunal Federal, foi contaminada por uma série de pedaladas processuais. Ninguém vai lhe devolver o tempo que ficou preso.

A diferença é que tudo transcorreu dentro de um regime democrático. A Justiça que o prendeu acabou condenada, as sentenças contra ele foram descartas, seu maior algoz leva na testa o carimbo de ter sido um juiz parcial e suspeito. Seu principal acusador perdeu o mandato de deputado federal por ter, segundo o Tribunal Superior Eleitoral, dado um jeitinho para conseguir ser candidato.

Os 580 dias de cadeia parecem ter afetado a capacidade de Lula de entender o processo social. Volta e meia, ele age como alguém que, depois de ter sido congelado, recupera a consciência e tem dificuldades para se adaptar aos novos tempos. Tempos de exarcebação da individualidade e do progresso pessoal em detrimento das lutas coletivas tão presentes em sua formação.

Diferentemente do líder político que sabia ouvir, negociar e ceder, Lula parece amarrado ao seu sucesso pretérito. Demonstra pouca disposição para conversas políticas e dificuldade para entender que nem sempre tem razão. Fez um golaço ao recolocar o país na comunidade internacional, mas erra ao focar na Ucrânia e esquecer Brasília. Pior, parece não ter superado as desventuras que passou. Como ele mesmo disse várias vezes, um líder político não é líder de si mesmo, mas de um grande contigente de cidadãos. Gente que, por mais solidária que seja ao presidente, não pode ficar refém de suas mágoas, que precisam ser retiradas da geladeira.

 

  • Artigo publicado em 01/06/23 no Correio da Manhã.

 

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