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A história não tem donos


Por Fernando Molica em 12 de janeiro de 2010 | Comentários (3)

Primeiro, uma correção: ao contrário do que foi dito na madrugada de hoje, no Jornal da Noite, da Band, as organizações armadas de esquerda não torturaram. Fizeram – não dá para deixar de reconhecer – algumas besteiras graves, cometeram crimes. Mas não torturaram, o que representa um importante divisor de águas e de histórias. O não uso da tortura permite que ex-militantes dessas organizações revelem sua participação, sua responsabilidade em sequestros, atentados, assaltos a bancos e execuções – estas, então apelidadas de “justiçamentos”. Viabiliza até mesmo a autocrítica.

A vergonha gerada pelo flagelo imposto a pessoas indefesas impede que ex-carrascos se orgulhem do que fizeram. Mesmo anistiados, eles não dizem “Eu torturei”. Não contam, não revelam, não assumem, sequer tentam se justificar. Sua defesa é feita por colegas de farda, advogados improvisados que não se constrangem de, com seu gesto, compremeterem as Forças Armadas, de manchá-las com a defesa da tortura. A responsabilidade de alguns passa a ser debitada na conta da instituição, a tortura acaba sendo incorporada, de forma acrítica, à história militar brasileira.

A peitada que os comandantes militares deram no seu chefe – o presidente da República – teria que ter sido punida. Ao aceitar a ameaça de demissão em bloco, o presidente Lula errou, não deixou clara a subordinação do poder militar ao poder civil, constituído pela sociedade. O poder civil não pode ser refém de qualquer outro poder.

Mas não tem jeito: formar uma comissão que apure crimes cometidos durante a ditadura é essencial, é o único jeito de zerarmos aquele jogo. Esqueletos precisam ser retirados do armário, minha vizinha de mais de 90 anos – sim, é uma adorável e lúcida senhora – merece saber o que foi feito do corpo de seu filho. O problema é que a possibilidade de punições pode impedir uma apuração detalhada. Passado tanto tempo, talvez seja mais razoável se fazer julgamentos históricos, não cíveis nem penais.

Não dá também para separar alguns dos crimes da esquerda dos cometidos pelo aparelho repressivo. Estes têm origem mais grave, ocorreram à sombra do Estado, em nome da sociedade. São, de cara, mais covardes. O agente que matava, que torturava, estava na ponta de uma cadeia que começava nos palácios e nos quartéis. Matava e torturava como representante do Estado.

Mas não é possível revelar apenas um lado da história. A apuração histórica vai permitir também reavaliar o papel das organizações da esquerda e, importante, eliminar alguns mitos que se transformaram em verdade. O mais grave: as organizações armadas também lutavam contra a ditadura militar, mas seu foco principal era outro. Elas queriam derrubar o capitalismo pela via revolucionária e implantar o socialismo, a tal da ditadura do proletariado. A democracia como hoje concebemos era desprezada, vista como “democracia burguesa” – sua restauração não era o objetivo da guerrilha.

Não é verdadeiro dizer que tentativas guerrilheiras e de rompimento institucional surgiram apenas depois do Golpe de 64. Animadas pelos ventos cubanos, algumas organizações – Polop, MRT, PCdoB – pregavam e articulavam a revolução antes da derrubada de Jango. Isso fica evidente em livros de autores insuspeitos, como Jacob Gorender (Combate nas trevas).

Da mesma forma, é mentira afirmar que o AI-5, baixado no fim de 1968, foi o único reponsável pela radicalização da esquerda. Ao longo daquele ano ocorreram várias ações ditas revolucionárias, como a invasão de um Hospital Militar em São Paulo (e a posterior explosão de um carro-bomba na sede do então 2º Exército – este atentado matou um soldado, Mário Kozel Filho). Nem todas as vítimas de ações da esquerda ocorreram em trocas de tiros, houve vários “justiçamentos”, alguns de militantes das próprias organizações, como no caso de Márcio Leite de Toledo, assassinado por um comando da ALN.

Enfim, a tal comissão é necessária, fundamental. Será dolorosa para torturadores, para políticos hoje travestidos de democratas e mesmo para integrantes de organizações armadas de esquerda. Mas é preciso chegar o mais perto possível da verdade histórica. A questão mais importante é que, ao contrário do que vem ocorrendo, a discussão sobre as investigações sobre esse passado recente não deve se guiar pelo interesse dos antigos antagonistas. A apuração não é importante apenas para repressores e reprimidos, é necessária para a sociedade, para que erros e crimes cometidos há algumas décadas não voltem a nos assombrar. Essa história não tem donos, é de todos nós, pertence à sociedade brasileira.

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Comentários
12 de janeiro de 2010

Eu é que agradeço, Joana.

Fernando Molica
12 de janeiro de 2010

Obrigada, Molica. Suas palavras sao precisas.

joana collier
12 de janeiro de 2010

Disse tudo, Molica!

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