Cabeças cortadas
Por Fernando Molica em 02 de julho de 2022 | Comentários (0)
No lançamento de ‘A cabeça cortada de Dona Justa’ (Rocco), perguntei pra autora, Rosa Amanda Strausz, se eu tomaria muitos sustos na leitura – o romance, afinal, relata histórias cheias de fantasmas, de relações entre este e outros mundos. Ela deu uma resposta dúbia o suficiente para afastar os receios deste assustado leitor.
Fiz bem em encarar os mistérios de Dona Justa e da saga de sua família. Sim, há muitos fantasmas, histórias meio de que arrepiar, contatos imediatos de muitos graus com gente que já passou desta para a supostamente melhor – no livro, a morte não algo que interrompa as conversas, as tramas, as relações.
Em linhas gerais, ‘A cabeça cortada…’ trata de personagens que gravitam em torno de uma fazenda que, por obra e graça de seu dono e de seu feitor, tornou-se amaldiçoada. Lugar de malvadezas e de tortura, especialmente contra os escravizados que por lá deixaram suas vidas. Malvadezas que geram consequências ao longo de muitas décadas.
Ganhadora do Jabuti logo em sua estreia na literatura (com o livro de contos ‘Mínimo múltiplo comum’), Rosa Amanda escreveu diversas obras para crianças e jovens – talvez daí venha a capacidade de criar mundos tão cheios de fantasia e de mistérios, como o que é contado em seu novo romance.
Um livro incômodo e fascinante, que, ao longo das páginas, faz com que nos aproximemos de um unvierso tão próximo, tão cheio de crueldades, de exclusão, de injustiças. Aos poucos, vamos perdendo o medo dos descarnados, fantasmas e serpentes que Rosa Amanda nos apresenta. O horror presente na fantasia vai dando lugar à constatação da tragédia que há séculos assola um país erguido com base na escravidão, na crueldade, no assassinato físico, econômico, religioso e cultural.
Não, a autora não recorre a metáforas óbvias – a tal fazenda tem o nome de “Francesa”, não há referências imediatas à realidade que nos cerca. Ela apenas conta uma história mágica que atravessa gerações e que nos faz olhar em volta. Que ressalta a necessidade de colocarmos a cabeça no lugar, que frisa o conselho rememorado por Benzadeus, uma das protagonistas: “Se você tem um quarto iluminado e outro escuro, e abre uma porta entre os dois, é o escuro que vai clarear e não o contrário”.