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Desfile de tolerância no Sambódromo


Por Fernando Molica em 12 de janeiro de 2011 | Comentários (2)

Coluna Estação Carioca, jornal “O Dia”, 12/01/11

Há uns 15 anos, o sociólogo Ricardo Mariano usou uma ótima frase para definir nossa peculiar relação com o sagrado: “Brasileiro gosta tanto de religião que uma só é pouco.” Ou seja, na hora de rezar, todo santo ajuda. Para desespero de xiitas de todas as religiões, o povo brasileiro, ao longo dos séculos, soube adaptar diferentes formas de falar com Deus. Nos nossos altares, sempre cabe mais um.

Esta relação foi, nos últimos tempos, abalada pelo radicalismo de algumas denominações evangélicas. Manifestações tão familiares como a veneração de imagens em igrejas católicas ou as incorporações de entidades em cultos afro-brasileiros passaram a ser classificadas como expressões do demônio.

Todo mundo tem o direito de achar o que bem entender. O problema é que alguns mais exaltados, na ânsia de propagar suas verdades, passaram a ofender e até a agredir os que com eles não compartilhavam da mesma crença. Estes gestos são incompatíveis com a adorável tradição brasileira de respeitar os deuses alheios e até mesmo de tirar uma casquinha deles. Nenhuma fé é melhor que a outra; nem a ausência de fé pode ser julgada. Todos somos livres para acreditar e também para não crer.

De uns tempos pra cá, notícias sobre ataques a terreiros se tornaram mais ou menos comuns, passeatas em defesa da liberdade religiosa precisaram ser organizadas. Sobrou até para o samba: alguns bambas andaram se queixando que, por influência de pastores, muita gente decidiu se afastar das quadras, o gênero musical passou a ser visto como uma extensão das religiões de matriz africana.

Isso tudo justifica minha alegria ao, no domingo passado, assistir ao episódio mencionado ontem, aqui neste espaço, pelo Milton Cunha. Num Sambódromo lotado, mulheres com roupas usadas em cultos de umbanda ou candomblé engrossaram, emocionadas, o coro de ‘Faz um milagre em mim’, sucesso do evangélico Regis Danese, membro da Assembleia de Deus. Foi de arrepiar ver a bela canção sendo levada em ritmo de samba, acompanhada por vários percussionistas e pelo público. Aquele cortejo resgatou uma das nossas melhores características, como o respeito, a compreensão, a capacidade de absorver influências, a rejeição ao preconceito. A pista de tantos desfiles foi lavada pela esperança e pelo desejo de uma convivência pacífica e agregadora. A tolerância, assim como o samba, é nosso dom.

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Comentários
17 de janeiro de 2011

Sei lá, Renata. NO texto eu cito as ameaças, as agressões. Não as desconheço. Nem quero, de maneira alguma, desvalorizar a luta de tanta gente. Luta que continua a ser travada. Mas acho que temos sim uma capacidade maior de tolerar, de incorporar elementos de diferentes culturas. Não nego o preconceito, o racismo, nada disso. Apenas acho que temos uma boa capacidade de fazer misturas. O samba carioca só cresceu do jeito que cresceu porque foi, em boa parte, adotado por pessoas de fora de seu universo original. As escolas de samba de SP permanecem no gueto - paulista rico desfila na Mangueira e na Portela, não na Vai-Vai. A umbanda incorporou elementos católicos e mesmo de culturas indígenas - e não dá pra dizer que, neste último caso, houve imposição de um poder dominante. Índios tb eram perseguidos e desvalorizados culturalmente. Enfim, é uma boa discussão. Mas continuo acreditando que a sociedade brasileira - apesar de autoritária, violenta, que ainda não abandonou resquícios da escravidão - tem sim uma boa capacidade de tolerância. As baianas lá do Sambódromo apenas reforçaram esta minha convicção. Abraços.

Fernando Molica
17 de janeiro de 2011

Tenho que discordar de vc. Não acho que a tolerância seja o nosso dom. Recentemente temos visto episódios lamentáveis que demonstram intolerância, radicalismos e preconceito. Embora a umbanda, o candomblé e os cultos afro-brasileiros em geral hoje não sejam mais ilegais como eram antes, existe sim muito preconceito e intolerância contra esses cultos e seus seguidores. As notícias de centros e terreiros queimados são apenas o exemplo mais visível disso. Mas existem ainda muitas práticas menores cotidianas que revelam que o Brasil infezlimente ainda não atingiu um patamar aceitável de democracia, o que inclui o direito a exercer sua religião. O samba também sofreu muito preconceito. Aliás, por causa desse preconceito surgiu a tradição do samba no trem, onde os sambistas podiam tocar na volta do trabalho e no caminho de casa sem serem importunados. Historicamente o Brasil não foi tolerante com os negros, sua cultura e sua religião. Muito pelo contrário. Seus cultos eram proibidos, e eles eram perseguidos. Se hoje o samba o samba é alegria nacional festajada por todos, e se hoje a umbanda e o candomblé são práticais legais - embora ainda sofram preconceito - não é porque o Brasil tem o dom da tolerância, mas sim porque muita gente lutou, sofreu e morreu para conquistar esse espaço. A tolerância não é nosso dom. Tem sido uma habilidade conquistada com unhas e dentes.

Renata