Dez anos do incêndio da boate Kiss
Por Fernando Molica em 27 de janeiro de 2023 | Comentários (2)
Na manhã de domingo, 27 de janeiro de 2013, por volta das 7h, fui acordado por uma ligação de meu filho mais velho, Júlio, que, jornalista, trabalhava na Globonews. Na véspera, eu tinha ido a um ensaio da Unidos da Tijuca, chegara em casa de madrugada, fiquei preocupado ao verificar a origem da ligação, ele não costumava ligar tão cedo.
Pelo telefone, Júlio me contou do incêndio da Kiss e que precisava passar na minha casa para pegar sua carteira de motorista – iria para Santa Maria e talvez precisasse dirigir por lá. Ao saber da tragédia, desabei. Como assim, mais de 300 mortos, todos muito jovens? Todos com idades parecidas com as dos meus filhos, meu Deus.
Poucas horas depois, o Ramiro Alves, diretor de redação de O DIA, me ligou. Perguntou se eu – então titular da coluna Informe do DIA – toparia ir para Santa Maria, ele queria reportagens mais amplas, menos comprometidas com o texto formal das notícias.
Gritei algo como “Claro que quero ir”. Por mais terrível que fosse, eu sabia que jornalista não pode fugir da notícia, que é melhor encarar o bicho de frente do que fantasia-lo. Talvez o fato de meu filho estar, naquele momento, viajando para lá tenha contribuído pra minha decisão. Sei que foi fundamental ter ido testemunhar e narrar aquela tristeza absoluta.
Até hoje tenho dificuldades de ler relatos sobre o caso, não tive coragem de ler o livro da brilhante colega Daniela Arbex. Mas eu fui e testemunhei fatos como a passeata que, na noite do dia 28, ocupou as ruas de Santa Maria. De vez em quanto, aqueles milhares de jovens vestidos de branco interrompiam o silêncio que marcava o ato para cantar versos de ‘Pais e filhos’, sucesso da Legião Urbana:”É preciso amar as pessoas/
Como se não houvesse amanhã”. Foi pesado, muito, não deu pra não chorar. Pela manhã, eu já havia chorado num culto em homenagem a uma das vítimas.Não custa lembrar que, dez anos depois, os culpados pelo massacre continuam livres.
Abaixo, o texto que mandei na manhã do dia 28:
Às 4h30 da madrugada, acompanhados de mais seis pessoas, o pintor Cezar Augusto Madruga Neves e sua mulher, a dona de casa Maria Aparecida Neves, velavam, na Igreja Quadrangular do Tuiuti, o corpo de seu único filho, o estudante Augusto Cezar Neves, de 19 anos, aluno de Ciências da Computação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
A exemplo da maioria de parentes de vítimas da tragédia da boate Kiss, eles abriram mão do velório coletivo e fizeram com que o corpo fosse levado para sua igreja, uma casa térrea pintada de bege no Centro da cidade. Maria Aparecida repetia a última conversa que, sábado à noite, teve com Augusto: o pedido para que trocasse a festa na boate pelo aniversário de um colega de louvores — o filho tocava guitarra no culto para jovens, realizado aos sábados. “Mas ele me disse que precisava andar com os próprios pés”, dizia mãe, olhos inchados.
Cerca de uma hora antes, num canto da quadra do Centro Desportivo Municipal (CDM), onde 15 corpos eram velados, Lidia de Melo escrevia mensagem em uma das bandeiras do Grêmio colocadas sobre o caixão do militar Leandro Nunes da Silva. “Escrevi em nome do meu filho, que era amigo do Leandro”, explicou. Àquela hora da madrugada, já eram dezenas as mensagens que decoravam a bandeira tricolor: “A mana te ama muito”; “Meu primo querido, descansa em paz, guerreiro, sou tua eterna fã, te amo”; “Vai com Deus, meu sorriso de cada dia”.
No outro extremo da quadra, uma jovem de nome Yasmim registrou, sobre a foto de Lucas Dias Oliveira, o quanto o amava. “Meu amor, minha vida. Te amo tanto, tanto. E nunca, nunca, vou te deixar. Tu já foi tudo para mim. Mais que um amigo, companheiro, namorado, amante.”
Outros 25 textos preenchiam uma folha de papel grudada à bandeira do Rio Grande do Sul sobre o caixão. “Sobrinho querido. Agora tu és livre, realmente feliz!” Cartolinas dispostas pelo ginásio traziam ofertas a parentes de vítimas de outras cidades. “Ofereço hospedagem”, “Ofereço banho e repouso”, “Ofereço: repouso, banho e desjejum”.
Rafael Ávila está no quarto semestre de Medicina; Adriana Volpo, no quinto. Passados os momentos mais tensos, em que colaboraram na triagem de quem precisava de atendimento, resolveram ajudar de outra forma e começaram a distribuir sanduíches na quadra. Já a psicóloga Camila Bevilacqua estava prestes a completar uma jornada de 24 horas — chegara às 6h ao CDM. Pela manhã, acompanhara um dos piores momentos da vigília, o reconhecimento dos 200 corpos estendidos no chão de outra quadra do complexo esportivo. Homens e mulheres circulavam entre os cadáveres esperando não encontrar seus filhos. Isto, em meio a toques de celulares das vítimas; desesperados, alguns pais, mães e irmãos insistiam em telefonar à espera de uma improvável resposta
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A cerca de oito quilômetros dali, as capelas do Cemitério Parque Santa Rita estavam lotadas, alguns velórios ocorreram no saguão; entre eles, os dos irmãos Marcelo de Freitas Salla Filho e Pedro de Oliveira Salla, que seriam sepultados pela manhã. Os enterros em sequência — de 25 a 30 seriam realizados até o fim do dia — dificultaram os trabalhos dos funcionários. No início da tarde, Aldoer Christo tentava organizar um bolo de ordens de serviço que trazia amarfanhadas. Debaixo de sol forte, um trator não parava de abrir covas no gramado.
Ali na frente, um grupo de umas cem pessoas se despedia de Carlos Alexandre dos Santos Machado, 26 anos, formado em Administração. A 60 metros de distância, amigos e parentes de Luiz Eduardo Flores, recém-formado em Ciências da Computação, rezavam a Ave-Maria. Entre eles estavam ex-professores na UFSM — terminado o enterro, eles aguardariam a chegada do corpo de Augusto Cezar, aquele velado na Igreja Quadrangular.
Poucas horas antes, o templo ficara lotado em torno do caixão do filho de Maria Aparecida e Cezar Augusto. O salão, com cerca de 140 metros quadrados, recebeu mais de cem pessoas que participaram de um culto iniciado às 10h. Um dos celebrantes, o pastor Isidoro Lélis dos Santos, citou Jesus: “Vocês vão passar por grandes aflições, mas, nos momentos de dor, vocês precisam estar alicerçados em Deus”.
Sentada ao lado do marido, diante do caixão e do púlpito, Maria Aparecida não resistiu quando amigos da igreja entoaram cânticos e precisou ser atendida por enfermeiros. “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar/Segura na mão de Deus e vai”. O conhecido hino cristão fez com que muitos chorassem. A fé garantia apoio mesmo diante das tristezas da vida e do peso da jornada. Mas não era suficiente para eliminar o efeito devastador da morte do rapaz.
Uma parente de Augusto, empregada doméstica, revelava que, cedo, recebera uma ligação dos patrões. Eles não ofereceram ajuda nem manifestaram solidariedade. Apenas questionaram se ela era assim tão ligada ao jovem a ponto de precisar faltar ao trabalho.
Obrigado, Sandra. Beijos.
fmolicaComo Admiradora/Fã do teu trabalho como Jornalista, e que acompanho, estou impactada, como que acabei de ler.. E já se passaram dez anos.. Parabéns,pelo teu trabalho, e como exemplo arrasta, ao teu Filho também.
Sandra Cohen.