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Hospitais de guerra*


Por Fernando Molica em 03 de julho de 2023 | Comentários (0)

Em julho de 2015, seis meses depois do atentado à redação do ‘Charlie Hebdo’, em Paris, o diretor do jornal, Laurent Sourisseau, o Riss, veio ao Brasil para participar do congresso da Abraji, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Num almoço, ele contou que fora a um hospital militar para tratar do ferimento no ombro causado por tiro de AK-47. Perguntei se a opção por um hospital militar estava relacionada a algum tipo de medida de segurança relacionada ao ataque terrorista. Não, foi levado porque apenas lá haveria médicos especializados em cuidar de vítimas de tiros de fuzil. Em um hospital comum, não haveria profissionais capazes de tratar de pessoas atingidas por armas de guerra.

Diante da resposta, foi inevitável pensar nos hospitais de várias cidades do Brasil, nos médicos e enfermeiros que diariamente se veem diante de pacientes com vítimas de tiros de fuzil – a rotação e a velocidade das balas causam no corpo um estrago ainda maior do que perecebido no ferimento externo. O que na França é excepcional, por aqui é rotina.

Venda de drogas ilegais ocorre em praticamente todos os países do mundo, mas, no Brasil, especialmente no Rio, esse comércio clandestino está associado ao domínio territorial, o que gerou a necessidade de armas para conquista e manutenção de áreas das cidades. A disseminação do uso de cocaína lá pelos anos 1970/1980 movimentou mais dinheiro (sua venda é bem lucrativa do que a da maconha), capitalizou quadrilhas e azeitou a corrupção no Estado, principalmente na polícia.

Boa parte desse dinheiro foi investido em armas cada vez mais pesadas. Armas nascem legalmente, são pesadas, difíceis de serem transportadas com discrição. Garantir um fluxo contínuo de munição, quase toda produzida no Brasil, exige uma logística afinada, muito além da capacidade dos bandidos que saem nos jornais; são cruéis, mas de formação educacional precária, incapazes de montar esquemas sofisticados.

Ao longo dos anos, autoridades de segurança preferiram apostar na compra de armamento compatível com os dos bandidos e deixaram pra lá a investigação e o combate ao tráfico de armas e de munição. Nos cinco primeiros meses deste ano, a polícia do Rio apreendeu 321 fuzis, cerca de dois por dia, 57% a mais do que no mesmo período do ano passado. Ótimo que essas armas foram retiradas de criminosos, mas o melhor é que elas sequer tivessem chegado até eles, são raras as notícias de apreensões de lotes de fuzis antes que sejam entregues a quadrilhas.

Não é razoável que as polícias não consigam deter esse fluxo, é praticamente impossível que bandidos consigam esse material sem cumplicidade de agentes do Estado. Arrancar fuzis de bandidos geralmente implica em batalhas que matam e mutilam muita gente, inclusive inocentes e policiais.

Jair Bolsonaro (PL) liberou esse comércio da morte e dificultou o rastreamento de armas e de projetéis, medidas que apenas favoreciam criminosos e dificultam a apuração de crimes. Parte das medidas foi revogada pelo Supremo Tribunal Federal, mas muitas armas foram compradas legalmente e estão por aí, parte delas volta e meia é encontrada com criminosos. O controle de todo esse material seria decisivo para uma diminuição dos crimes. Reduzir esse fluxo é necessário para que, aos poucos, médicos civis não precisem mais se especializar em atender feridos de guerra.

*Publicado no Correio da Manhã, 27/6/23.

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