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O inventário de Julio Reis

O inventário de Julio Reis


  • Record
  • 2012
  • Capa tipo Brochura
  • 9788501097842
  • 192 Páginas

Literatura não é apenas entretenimento; acima de tantas outras justificativas, literatura é acerto de contas que poderá ser refeito sobre realidades históricas e suas linguagens recriando, pela voz do narrador, uma lógica autopoética, mas nunca imparcial e muito menos impermeável. Voltar a fatos singulares engendrados sob a lente da ancestralidade é uma prerrogativa que poucos escritores têm a coragem de assumir às claras e enfrentar sob as pretensões da arte literária. Fernando Molica, por certo um dos escritores brasileiros mais significativos de sua geração, encara com minúcias a história, e dentro da história a tragédia, de seu bisavô, Julio Reis, um maestro autodidata, resistente, alguém que nem sempre aceitou compor com as facilidades e conveniências das transições políticas e artísticas ocorridas entre o fim do século XIX e o início do século XX.

O termo inventário do título não é gratuito e não é resumo: ao lado desse sutil inventariar se afirma um nada leviano inventar. Fernando Molica, com dicção literária ágil, assume cumplicidades tremendas diante de seus protagonistas. Este inventário não dispensa o olhar crítico sobre uma época e sobre a cidade que ainda é a alma deste país, híbrido e com tanta dificuldade em se reconhecer. O centro do Rio de Janeiro, fabuloso e sempre tendendo a labirintos, figura quase como um protagonista desta breve e delicada aventura moldada em torno da coragem, e de certa ingenuidade rara, de um homem que poderia ter sido o bisavô impressionante de qualquer um de nós. Não esqueça, portanto, que as personagens deste livro existiram e que ainda assim se trata de uma obra de ficção.

Os caminhos escolhidos pelo autor, seus panoramas e seus motivos configuram um conflito que parece não ter fim: a necessidade da arte e da manutenção da sua presença, justificando a pertinência de sonhos capazes de empolgar mesmo quando a vida que os originou há muito tenha acabado. Insisto, é acerto de contas, um acerto de contas capaz de mover a melhor das literaturas.

Paulo Scott

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Folha de S.Paulo, 18/03/2012 Tempo de flanar

Flanar era no tempo de Julio Reis. Compositor, maestro, pianista, escritor e crítico, esse personagem hoje desconhecido foi popular no Rio do fim do século 19, quando criou valsas, polcas, habaneras e tangos e conviveu com artistas, intelectuais e políticos nas temporadas líricas do Teatro São Pedro.

No século 20, passou a compor sinfonias e óperas. Uma delas, “Heliophar”, integrou a festa que se realizou na então capital federal em comemoração do Centenário da Independência, em 1922.

Admirador de Beethoven, Verdi, Wagner -entre os brasileiros, de Carlos Gomes, que o indicou para um período de estudos na Europa -, Julio Reis tinha horror a tudo o que fosse moderno e que de longe cheirasse a Heitor Villa-Lobos.

Dizia que a nova forma de compor desprezava a melodia. Que Debussy “traduz em música o sono e o vozerio dos sapos num charco; revela as confidências de um casal de cegonhas; e reproduz o mutismo filosófico de um orangotango em êxtase ao aparecimento da lua nova”. Acabou atropelado pela modernidade. Morreu pobre, em 1933, no subúrbio de Piedade.

Ressurge agora, após quase 80 anos, no romance “O Inventário de Julio Reis”, pelas mãos de seu bisneto, o jornalista Fernando Molica.

“É claro que houve pesquisa, mas é ficção. Escrevi com liberdade. Até a produção documental é, de certa forma, ficcional”, diz Molica. O livro chega às livrarias em abril, com a chancela da Record.

Alvaro Costa e Silva


O Dia, 08/04/2012 Viagem ao Rio Antigo traz de volta o compositor Julio Reis

Rio – Um homem atropelado pela época em que viveu. Um filho em busca de uma relação com o pai já morto. Essas são as histórias que constroem ‘O Inventário de Julio Reis’ (ed. Record, 192 págs, R$ 34,90), quarto romance de Fernando Molica, colunista do ‘Informe do Dia’ — com lançamento amanhã, a partir das 19h, na livraria Saraiva do Shopping Rio Sul.

O autor partiu de uma história que realmente existiu: compositor clássico que viveu, no Rio, a transição do século 19 para o 20, Julio Reis caiu no esquecimento depois de sua morte. O filho Frederico, no entanto, passou a vida tentando resgatar a memória do pai e fazer com que suas obras fossem interpretadas outra vez (já que, no tempo de Julio, não havia gravação em fita ou disco). Com um detalhe: os dois eram, respectivamente, bisavô e avô de Molica.

“O Julio Reis é um personagem que conheço desde os meus 11, 12 anos. Convivi muito com o meu avô, ele morreu quando eu tinha 31 anos. Então vi muito aquele material, meu avô sempre tentando fazer com que as obras do pai fossem tocadas… Cheguei a acompanhá-lo quando ele levava partituras para maestros que poderiam executá-las”, conta Molica.

Permaneceu com o neto a vontade de resgatar a obra do bisavô. “Sempre achei que deveria fazer algo, mas não sabia o quê. Ele é um artista esquecido, sobrou muito pouco dele, existem poucas referências e, mesmo assim, é sempre um personagem citado ‘en passant’”, explica o autor. “Quando comecei a pensar mais seriamente sobre o assunto, entendi que iria chegar ao pai através do filho. Pelo meu avô, eu conseguiria construir o personagem Julio Reis”, diz Molica.

No romance, duas tramas se entrelaçam: a de Julio, contada em primeira pessoa, e a de Frederico, na terceira pessoa. Em comum entre os personagens, a música como uma possibilidade de fuga da realidade pobre e cheia de obrigações. “O Julio Reis era funcionário do Senado, nos últimos anos de vida morou com o filho, tanto que morreu na casa do meu avô. Você pensa em compositor clássico e imagina um mundo de palácios, mas não era nada disso”, entrega o autor.

Ele acredita que o bisavô tenha esbarrado na dificuldade em se adaptar às grandes mudanças de seu tempo. “Foi um período muito conturbado no mundo e no Brasil, com o surgimento do movimento sindical, muitas revoltas, o período de consolidação da República, o processo de criação das favelas, o Pereira Passos quebrando a cidade inteira…”, enumera. “O modelo romântico de música que ele admirava foi atropelado pela modernidade”.

Apesar das referências históricas, Molica frisa que o livro é um romance — e, portanto, não há tanta precisão assim em certas informações. “Dentro da palavra ‘inventário’ tem o verbo ‘inventar’”, chama a atenção o autor. “Usei meu avô como referência: na minha história, é um filho que busca o pai”. E, também, um neto que se aproxima do avô sisudo.

Kamille Viola


O Globo, 10/04/2012 Retrato de um compositor quando ficção

O jornalista Fernando Molica lança hoje romance sobre Julio Reis, seu bisavô.

O jornalista Fernando Molica se firmou como romancista na década passada com três livros (“Notícias do Mirandão”, “Bandeira negra,amor” e “O ponto da partida”) nos quais podia até transparecer sua experiência profissional, mas nada de sua vida pessoal. Já a quarta incursão pela ficção — com lançamento hoje, às 19h, na livraria Saraiva do shopping Rio Sul — tem um pé dentro de casa: os protagonistas de “O inventário de Julio Reis” (Record) são seu bisavô e seu avô. Mas é só um pé, ressalta ele, pois as informações que tinha sobre o compositor Julio Reis, seu bisavô, não seriam suficientes para escrever biografia, caso optasse por esse caminho.

— Eu tinha um personagem muito duro, rígido, de cartola. Não tinha nada da emoção desse cara, daquilo que o movia na música. Precisava dar alma a esse personagem. Achei que a ficção criaria essa possibilidade — conta Molica, ex-O GLOBO, TV Globo e atualmente titular da coluna “Informe do Dia”, do jornal “O Dia”.

Final de vida sem prestígio

Julio Reis (1863-1933) foi um compositor que teve sua notoriedade no cenário da música clássica do Rio no fim do século XIX. Compôs várias peças de concerto, sendo “Vigília d’armas” a mais conhecida, a ópera “Heliophar” e uma outra ópera que deixou inacabada, “Sóror Mariana”. A luta para fazer valer uma promessa de subsídio público para encenar a segunda ópera lhe custou tempo e prestígio, contribuindo para que terminasse a vida pobre e desgostoso. Mas a razão maior de sua decadência foi ter, tanto como compositor quanto como crítico que escreveu para diversas publicações, fincado pé contra a modernização da música de concerto, a ponto de revelar que saíra no meio de uma apresentação de Villa-Lobos.

— Ele foi um Carlos Gomes (1836-1896) fora do tempo, chegou 20 anos depois — afirma Molica, que reveste o livro de informações sobre as mudanças pelas quais o Rio passou no início do século XX, um projeto de modernização urbana que também soterrou tradições culturais como as que o solene Julio Reis cultivava.

O escritor chegou ao compositor por meio do avô, a quem chamava de Mário, mas que no livro é Frederico (seu primeiro nome), artifício que usou para distanciar-se do vínculo afetivo que prejudicaria a ficção. — Digo que tive uma inspiração de caráter bíblico, pois vi que não chegaria ao pai sem passar pelo filho. Meu avô levou a vida inteira buscando o pai, com quem teve uma relação distanciada. E ele acabou tendo uma relação distanciada com os próprios filhos — conta Molica, que alternou os capítulos: os da época de Julio Reis são narrados pelo próprio; os que mostram a angústia de Frederico por rever as obras do pai sendo tocadas são em terceira pessoa.

Julio Reis documentou bem sua vida, guardando críticas dele e sobre ele, notícias da época e cartas que escreveu, como as da batalha por “Sóror Mariana”. O acervo foi herdado pelo filho, que passou para uma filha, que em 2008 repassou para Molica, já conhecedor da história do compositor. Após muito ler o material, ele decidiu criar uma obra de ficção em que, se possível, o leitor sequer precisasse saber de suas relações familiares com os personagens.

— Não queria que o livro se subordinasse a isso — diz. Mas ele se empenhou em realizar um desejo do avô: “Vigília d’armas” será novamente tocada no dia 19, na UniRio, com regência do maestro Branco Bernardes. E, ainda, um do bisavô: doou o arquivo que tinha sobre Julio Reis para a Biblioteca Nacional.

Em seu quarto romance, jornalista escreveu uma obra de ficção a partir de fatos reais.

Um romance baseado na vida e obra de seu próprio bisavô, o compositor, maestro, pianista e crítico musical Julio Reis é a nova obra literária de Fernando Molica. Após três romances ambientados na contemporaneidade, o escritor volta ao Rio de Janeiro do início do século XX para compor um rico panorama de uma época de grandes mudanças e resgatar a obra de um grande artista brasileiro que o tempo quis esquecer.

Qual foi sua motivação para escrever este livro?

Soube da existência do Julio Reis no início da adolescência, eu morava em Piedade, perto dos meus avós, e ia muito na casa deles. Foi quando fiquei sabendo que o pai de meu avô Mário, portanto, meu bisavô, tinha sido um compositor clássico, fiquei muito surpreso com a história. A figura de um compositor da chamada música clássica me parecia meio incompatível com a vida simples de Piedade. Desde então, passei a acompanhar a luta do meu avô, que praticamente dedicou sua vida à luta pela divulgação da obra do pai. Ele mandava cartas para autoridades, presidentes da República e diretores de jornais em busca da possibilidade de divulgação da obra do Julio Reis. Tudo o que ele queria era poder voltar a ouvir aquelas composições, em especial, Vigília d’armas, que estreou em 1915, no Theatro Lyrico, que ficava na Avenida 13 de Maio. Depois, ela só voltou a ser executada em 1923. Meu avô foi também o responsável por me levar aos primeiros concertos, de um modo geral, programas gratuitos como vesperais no Theatro Municipal e concertos do Projeto Aquarius. Sou muito grato a ele, que me apresentou a um tipo de música. A história de Julio Reis era algo que me martelava, eu achava que poderia ser contada, que merecia ser contada. Houve também um episódio curioso: há uns anos, creio que em 1996, eu estava no Museu d’Orsay, em Paris, e, ao entrar numa sala, dei de cara com o quadro Le rêve (O sonho), de um pintor francês chamado Édouard Detaille. Um quadro imenso, de uns doze metros quadrados. Este quadro servira de inspiração para Vigília d’armas, uma gravura que o reproduzia fora colada por Julio Reis na capa da partitura. Eu vira aquela imagem dezenas de vezes. Fiquei meio baqueado ao dar de cara com o quadro no museu, nunca pensei em vê-lo exposto. Na época, meu avô já havia morrido e talvez este episódio tenha, de alguma forma, tenha me estimulado um pouco mais a tentar escrever um livro sobre Julio Reis. Não cheguei a ser obcecado por isso, mas por volta de 2007, quando concluía meu segundo romance, comecei a achar que estava chegando a hora de tratar do Julio Reis. Na época, o que restara do acervo dele tinha vindo para minha casa, pois meu avô, que morreu em 1992, queria que eu ficasse responsável pelo material, que tratasse de sua doação para a Biblioteca Nacional. O fato de ter o acervo ao meu alcance facilitou muito o trabalho de pesquisa. O Inventário de Julio Reis é um livro de ficção, mas baseado na vida do personagem, era importante pontuar a história com elementos da realidade em que ele viveu.

Como é que foi criar uma ficção a partir de uma realidade, de um personagem real?

Foi meio complicado encontrar um viés para o livro. Julio Reis deixou um acervo bem organizado, reuniu partituras e muitos recortes de jornais — críticas que escreveu e o material sobre suas composições. Mas praticamente não havia detalhes sobre sua vida particular. O material permitia conhecer o profissional, mas não a pessoa. Eu não queria fazer uma biografia, um livro de não-ficção. O que me interessava era tentar descobrir o que movia aquele homem, quais eram seus sonhos, seus desejos, suas frustrações. Em 2007 e 2008 conversei algumas vezes com uma tia mais velha, Yara, que chegou a conviver com o avô (ela morreria no fim de 2008). Ela me contou algumas histórias sobre ele, sobre seu temperamento. Eu me lembrava também das conversas com meu avô, Frederico Mário. Ao reunir todas as informações, consegui chegar ao que classifico como um perfil bem razoável do personagem — o desafio era colocá-lo, digamos, para jogar, para atuar. Eu formulei uma hipótese para o Julio Reis a partir de dados concretos: suas críticas, suas composições, suas lutas. Escrevi com muita liberdade, tentei apenas não trair o personagem, um cuidado que também tenho quando crio qualquer outro personagem de ficção. Enfim, não existe uma verdade absoluta, mesmo em biografias, o autor destaca determinadas características, opta por este ou aquele caminho. A produção documental também é, de certa forma, ficcional.

Como era o Rio de Janeiro à época de Julio Reis? E o cenário musical da cidade, qual era?

O Rio era a capital federal, centro da República, aqui se concentrava o que de melhor e mais importante havia na política, na academia, nas artes. O cenário musical era muito interessante, companhias internacionais de ópera se revezavam por aqui, ocupavam quatro, cinco teatros. Grandes estrelas da música lírica faziam temporadas na cidade. O pai de Julio Reis veio para o Rio nomeado pelo governo imperial, veio trabalhar. O início do século 20, uma época fundamental para a vida de Julio Reis, foi também um período de muitas transformações. Houve a I Guerra Mundial, a Revolução Soviética. Por aqui, tivemos revoltas militares, uma série de dificuldades econômicas e politicas relacionadas à substituição do Império pela República. Foi uma época de consolidação de conquistas científicas e industriais, da expansão da eletricidade, da substituição dos bondes puxados por burros pelos elétricos, da chegada do automóvel. Foi quando houve a reformulação do Centro da cidade, a derrubada de milhares de casas, a abertura de avenidas, como a atual Rio Branco, a construção do Theatro Municipal. A modernidade também chegou às artes, à música, é só ver os movimentos artísticos que afloraram naquela época. Julio, de certa forma, foi uma vítima deste choque de modernidade. Ele estava muito atrelado a uma visão mais clássica da música, suas referências estavam nos séculos XVIII e XIX. Ele se assustou com a chegada de compositores como Debussy e Stravinsky e, depois, de Villa-Lobos. Ele não poupava a modernização da música, era ferrenho na defesa de padrões mais clássicos, baseados na melodia e na harmonia. Não deixava de atacar o que chamava de “música sem música”. De certa forma, JR foi atropelado pela modernidade.

Julio Reis chegou a ser um compositor de sucesso?

Ele era uma pessoa muito conhecida na cidade, dezenas de suas composições foram editadas e lançadas — o Rio era uma cidade cheia de pianos, as pessoas compravam partituras para tocá-las em suas casas. Como era um polemista, despertava discussões sobre os rumos da música, publicou livros de crítica e de ficção. Algumas de suas obras de maior peso — sinfonias e mesmo uma ópera — foram executadas em teatros da cidade. Ele também se apresentava como pianista, era uma pessoa muito ativa no cenário musical

Quais foram as referências musicais do compositor? E que músicos ele detestava?

Ele adorava os clássicos: Beethoven, Chopin, Verdi, Wagner. Entre os brasileiros, admirava Carlos Gomes, que chegou a indicá-lo para um período de estudos na Europa. Tinha horror a tudo o que era moderno, que rompia com o convencionalismo da música. Dizia que a nova forma de compor desprezava a melodia, chegou a dizer que a música de Debussy imitava o cair da chuva, “traduz em música o sono e o vozerio dos sapos num charco; revela as confidências de um casal de cegonhas e reproduz o mutismo filosófico de um orangotango em êxtase ao aparecimento da lua-nova”.

Quais foram os motivos para a sua decadência como artista?

Em primeiro lugar, havia as dificuldades naturais de quem se dedica à chamada música clássica ou de concerto. Mesmo hoje, pouquíssimos são os compositores brasileiros que integram o repertório das orquestras. Há quanto tempo as óperas de Carlos Gomes não são montadas no Rio? Lembro que assisti a uma montagem de O Guarani há uns 20 anos, acho que foi a última no Municipal. Volta e meia temos programas que incluem peças de Villa-Lobos, de Carmargo Guarnieri, mas isso não é assim tão comum. O Museu Villa-Lobos, nosso principal compositor, é pequeno, pouco atrativo. Ele mereceria muito mais. Nossos compositores contemporâneos são praticamente desconhecidos e, claro, há muita gente compondo. A, digamos, seleção natural talvez seja mais cruel em algumas formas de expressão artística. Em sua época, Julio Reis já esbravejava contra a falta de apoio aos músicos brasileiros. No século XX, a música de concerto também passou a sofrer a concorrência de outras diversões, como o cinema, o futebol, a própria música popular. Hoje, há — e é fundamental que isto ocorra — um grande esforço de recuperação de nossa tradição musical de caráter mais popular, mas a produção de música para concerto continua meio escanteada. Julio também era pobre, tanto que, na velhice, precisou morar com o filho em Piedade, isto também colaborou para seu esquecimento.

Como foi o episódio da ópera que teria verbas governamentais para sua montagem?

Esse episódio, o da Sóror Mariana foi fundamental na vida de meu bisavô. Ele usou como libreto uma peça do português Júlio Dantas, o mesmo autor de A ceia dos cardeais. Ficou fascinado com o texto e, em pouquíssimo tempo, compôs a ópera. Com seus contatos no Senado, conseguiu a aprovação de uma verba para a montagem de Sóror Mariana, e acabou se desgastando muito para tentar liberar o dinheiro.

Como escritor, você tem romances, contos e uma obra de não-ficção. Como você definiria este livro dentro de sua trajetória literária?

Eu tenho um livro de não-ficção, O homem que morreu três vezes — o engraçado é que o personagem principal do livro, o Antonio Expedito Carvalho Perera parece ter saído da ficção. Organizei também três livros de reportagens para a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Mas, como escritor, me dedico mesmo à ficção. O inventário de Julio Reis é meu quarto romance. Também tenho contos incluídos em três coletâneas. A opção pela ficção me parece bem clara, é que gosto mais de fazer na literatura. Acho que minhas obsessões e preocupações estão em todos os livros, deve haver uma certa unidade em todos eles Assim, de cara, dá pra notar uma mudança no tempo. Notícias do Mirandão (2002), Bandeira negra, amor (2005) e O ponto da partida (2008) tratam de um Rio contemporâneo, daria até para dizer que formam uma trilogia. Em O inventário, eu pulo para o início do século XX, há um deslocamento bem forte. Todos estes livros tratam também de personagens com dificuldades para se situar no mundo, com muitas dúvidas. Talvez seja uma outra característica, não sei.

Você crê que o livro pode ajudar a resgatar a obra de Julio Reis?

Espero que sim, ficarei feliz se isso acontecer. De certa forma, isso permitiria a realização de um sonho do meu avô.

Luiz Fernando Vianna


Diário do Nordeste, 05/05/2012 O inventário de Julio Reis

Com um pé na realidade, este romance disseca, também, o Rio de Janeiro, capital da República, onde se concentrava o que de melhor e mais importante havia na política, nas academias, nas artes. O cenário musical vastíssimo, com companhias internacionais de ópera se revezando em espetáculos concorridíssimos. A Primeira Guerra, a Revolução Soviética, as conquistas científicas, essas e outras transformações fundamentais para a cidade e para Julio Reis desfilam pelas páginas, em meio a histórias controversas e pitorescas. Trata-se de uma leitura sobretudo desafiadora – um alimento.


Revista Música Brasileira, 17/05/2012 Quase 80 anos depois de sua morte, compositor Julio Reis volta pela mão da literatura

Um “acerto de contas”, segundo o escritor Paulo Scott, na orelha do livro. Mas também uma declaração de amor a um avô e a um bisavô, a um Rio de Janeiro de começo do século passado, à música e à literatura.

Também uma reverência à relação filho-pai, “O inventário de Julio Reis” (Editora Record), do jornalista e escritor Fernando Molica, reabre as cortinas do passado para nos apresentar o compositor clássico Julio (Cesar do Lago) Reis, nascido em São Paulo (1863), que construiu família, carreira na música e no serviço público (foi funcionário do Senado), projeção e dissabores na então Capital Federal, onde viveu até sua morte, em 1933. Para quem não sabe (eu não sabia), Julio compôs “valsas, polcas, mazurcas, habaneras, quadrilhas, schottischs e tangos brasileiros”. Criou peças religiosas e até uma “Marcha triunfal”, executada em Roma nas comemorações do Jubileu do Papa Leão XIII.

Praticamente autodidata – só havia estudado música com a mãe, na infância – Julio contou, em vida e também depois de sua morte, com simpatias, aplausos, intrigas e até indiferenças. Em nome do pai, o filho do compositor da emblemática “Vigília d´armas” – que na esteira do lançamento da obra volta a ser executada até no Instituto Villa- Lobos, – Frederico, retoma o “acerto de contas” com a vida, a memória e a obra de Reis, e em defesa dela chega a enviar cartas para um general-presidente da República. Fizera uma caixa preta de madeira para guardar partituras manuscritas, livros e recortes de jornais, e lançou-se ao inventário da herança que, sem saber, estava legando ao seu neto.

Julio Reis era erudito, de enaltecer Carlos Gomes e Villa-Lobos e de torcer o nariz para os ritmos populares como o samba, o maxixe e os batuques que começam a embalar o Rio a partir do Estácio e da Praça Onze, “música fácil, que falava aos instintos mais baixos”. Em nome do avô, o acerto se impõe à história da criação musical e cai nas mãos de Fernando Molica, neto de Frederico, bisneto de Julio e um dos mais atentos escritores dos nossos dias (comprove lendo também “O ponto de partida” ou “Notícias do Mirandão”). O resultado é cativante, mas não vou contar. Só lendo o livro ou ouvindo as melodias.

Em 1994, muita gente descobriu que existia um talentoso compositor brasileiro chamado Alberto Nepomuceno graças a um ótimo romance-resgate: “Ana em Veneza”, de João Silvério Trevisan. Este ano, um número muito maior de leitores – incluindo este resenhista – está descobrindo a existência de outro compositor importante, Julio Reis, graças novamente a um romance dos bons.

Bisneto do compositor, Fernando Molica viajou primeiro à Belle Époque carioca para reconstruir literariamente a batalha de Julio Reis contra o descaso e o esquecimento. Em seguida, voltou ao coração do século 20 a fim de reconstruir outra batalha perdida: a do filho do compositor tentando salvar do descaso e do esquecimento a obra do pai.

Dois crimes condenaram Julio Reis à morte em vida. O primeiro, ser pobre e, consequentemente, autoditada. O segundo, detestar a música modernista. Seu interesse estava todo nos mestres e nos valores musicais do passado. O romance alterna os dois momentos, o empenho do pai e o do filho, revelando tudo, até mesmo o lado cômico dessa tragédia doméstica.

Avaliação: ótimo

Luís Pimentel


Saraiva Conteúdo, 30/05/2012 Julio Reis: o compositor que pretendia ser tão bom na ópera quanto Carlos Gomes

No fim do séc. XIX e começo do séc. XX, surge um garoto prodígio que já revelava, teimosamente e de forma autodidata, o dom musical compondo, aos 13 anos de idade, “Ave Maria” para pianos e coros.

Começa assim a trajetória de Julio Cesar do Lago Reis (1863-1933), um compositor paulista, maestro, pianista e crítico musical que encontrou no Rio de Janeiro a inspiração para sua arte.

Isso mesmo em meio ao cenário de transformações da época, como lutas operárias, a chegada dos bondes elétricos e dos automóveis e, principalmente, as mudanças no meio artístico e as novidades na forma de compor.

Admirado pelo diplomata e escritor Ruy Barbosa e com pretensões ousadas de um dia ser melhor que Carlos Gomes, Julio Reis defendia de todas as maneiras a prática da harmonia musical incluindo em seu repertório valsas, polcas, habaneras e tangos, ficando popular entre os intelectuais.

Apaixonado pelos clássicos como Chopin, Beethoven e Mozart, detestava compositores que queriam modernizar a música, como Villa Lobos, Stravinsky e Debussy, sendo que, para Julio, este último traduzia em sua música “o sono e o vozerio dos sapos num charco”.

Fernando Molica, bisneto do compositor, pesquisou as curiosidades do artista. O resultado foi o romance <em>O Inventário de Julio Reis</em>. A obra não é uma biografia, e o enredo é apresentado de forma ficcional.

Em entrevista ao SaraivaConteúdo, Molica descreve como foi se aventurar nesse quarto romance.

Como surgiu o projeto de escrever um livro de ficção através de fatos de um personagem real, o seu bisavô e compositor Julio Reis?

Por volta de 2007, quando eu terminava meu romance anterior, <em>O ponto da partida</em>, é que comecei a pensar em transformar o assunto. Não buscava uma biografia, um registro documental de sua vida e obra. Procurei criar um personagem a partir de determinados parâmetros, procurei construir a história de um homem que percebe, assustado, o fim de muitas de suas referências, que tem dificuldades para construir uma relação com os filhos. Um sujeito que se mostrava tão duro em suas críticas e tão sonhador em sua criação. O meu Julio era um homem que se batia entre as limitações de uma vida difícil e o desejo de uma glória artística.

Em algum momento o vínculo afetivo prejudicou o processo de O Inventário de Julio Reis?

Acho que não. Não conheci o Julio Reis. Convivi muito com o filho dele, meu avô, Frederico Mário, que acabou virando personagem do livro. Chamávamos meu avô de Mário. No livro, resolvi tratá-lo de Frederico, exatamente para gerar um certo distanciamento. Mário era o meu avô, Frederico passou a ser o personagem. Um nome que até caía melhor, já que remetia a Frederic Chopin, um dos ídolos de JR.

Durante a pesquisa no acervo de Julio Reis, qual foi a maior surpresa ao inventariar a história das obras?

Li com atenção todos os livros, todas as críticas de espetáculos que ele escreveu. Isso me permitiu ter uma boa noção de seu pensamento, de suas preocupações para que eu pudesse construir um personagem. Fiquei surpreso com a firmeza com que ele defendia seus pontos de vista. De certa forma, essa insistência acabou sendo responsável por parte de seu esquecimento. Ficou fora do seu tempo, se apegou a um mundo que já não existia.

Qual foi a fase de sucesso de Julio Reis?

Ele teve uma atuação importante no início do século 20, quando suas sinfonias e óperas foram montadas. Mas, mesmo antes, conseguiu reconhecimento na produção de peças mais ligeiras, valsas, polcas, mazurcas e tangos brasileiros, que eram publicadas pelas editoras musicais. O Rio era uma cidade cheia de pianos. Para ter música em casa, as pessoas precisavam comprar as partituras e executá-las.

O fato de Julio Reis não aceitar as mudanças na forma de compor música clássica no séc. XX colaborou para a sua decadência como artista? Por que?

Não falaria em decadência, mas em esquecimento. Ele foi atropelado pela modernidade. Tudo isso se refletiu na vida artística. Preferiu ser fiel aos seus princípios, aos compromissos, queria ser um novo Carlos Gomes numa época que apontava para o surgimento de Villa-Lobos.
Julio Reis compôs obras como a “Marcha Triunfal” no jubileu do papa Leão XIII, valsa “Odaléa” para Carlos Gomes, o poema sinfônico “Vigíla D’armas”, entre outros.

Quais composições poderiam se transformar na trilha sonora do compositor que era apaixonado pelo modelo romântico da música?

Uma delas, a sinfonia ‘A Caravana Celeste’, é bem representativa. Na sua introdução, Julio escreveu um texto em que, digamos, narra a composição. A tal caravana era uma reunião de artistas, músicos, pintores, escultores, que viajam em direção à glória, à beleza das artes. Cultivava a ideia da Musa, de uma inspiração divina que iluminava os artistas.

Como romancista, quais foram as dificuldades para dar alma ao personagem?

Era preciso injetar humanidade naquele personagem. Precisava quebrar esta couraça de Julio, gerar condições para que se apresentasse desarmado. Alguém que fizesse um balanço de sua vida, de sua trajetória, de seus sucessos e fracassos. Era fundamental que ele estivesse disposto a fazer um inventário mais sincero, como se escrevesse para a posteridade. O personagem Frederico foi a chave para a construção de Julio. Por meio dele busquei fazer um personagem mais humano.

Com a publicação de O Inventário de Julio Reis , você considera ter realizado o sonho do seu avô de revelar detalhes de um artista autodidata e crente no poder de suas músicas?

De certa forma, sim. O livro é um romance, mas ele permitiu que o nome de Julio voltasse a circular; conseguimos executar uma sinfonia que não era tocada há quase 90 anos. Isso representa o pagamento de uma espécie de dívida com o meu avô. Ele me levou aos primeiros concertos, despertou meu gosto para uma outra forma de música. É bom saber que O inventário de Julio Reis permite, de alguma forma, a recuperação de alguém que ficou tanto tempo esquecido.

Iveilyze Oliveira


Revista de História da Biblioteca Nacional, 02/07/2012 Herança Musical

Aos 13 anos, Julio Cesar do Lago Reis (1863-1933) já causava admiração por compor a “Ave Maria” para piano e coro. Autodidata, o jovem era considerado um prodígio, mas não parou por aí. Ele também foi organista, jornalista, escritor e crítico musical, tendo muitas obras publicadas e guardadas na Biblioteca Nacional. No entanto, centenas de outras – mais de 200 partituras – pertenciam aos herdeiros, que agora decidiram doar todo o acervo à BN.

A decisão foi do jornalista e escritor Fernando Molica – bisneto de Reis –, após finalizar seu livro O inventário de Julio Reis (Record, 2012), romance baseado na vida do compositor. “Era um desejo do meu avô, Frederico Mário. Ele herdou esse acervo do pai e o conservou a vida inteira. Chegou a deixar um bilhete, e foi explícito comigo dizendo que queria a doação”, conta Molica. Outro fato que pesou foi a impossibilidade de cuidar adequadamente de tudo em casa.

“O material está em boas condições, mas não estava guardado do jeito que deveria. Tem muita coisa escrita ali com mais de 100 anos. É preciso limpar algumas; outras têm que ser restauradas. Não dá para fazer isso em casa”, diz o jornalista. Com a transferência das obras, Molica acredita que a pesquisa será facilitada. Ele lembra que recentemente foi procurado por alunos de Música da Universidade de São Paulo interessados em montar uma ópera baseada em libreto de autoria de seu bisavô. “A partir do momento em que vai para a Biblioteca Nacional, passa a ser acessível a todo mundo, que é o que interessa”, afirma.

Para ele, ter o material à mão ajudou muito na sua pesquisa histórica. “É uma ficção, mas tem como ponto de partida a vida de uma pessoa que existiu. Estive também na BN pesquisando jornais da época, porque eu queria ter uma base razoavelmente sólida, para não trair o personagem. E quando terminei de escrever, achei que estava na hora de fazer a doação”, conclui.

Elizete Higino, chefe da Divisão de Música da Biblioteca Nacional, garante que o acervo de Julio Reis está em muito bom estado. Embora algumas peças precisem de restauração, as condições gerais do material são boas. São 13 envelopes contendo diversas obras do artista, incluindo reportagens de jornais sobre suas apresentações e críticas de autoria dele e sobre ele. A maioria das partituras doadas foi escrita de próprio punho por Reis.

Satisfeito com a doação, Molica acha que fez o que devia para preservar o patrimônio e dar uma contribuição à música: “Chega uma hora em que isso naturalmente deixa o âmbito familiar e passa a ser de todos”.


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O calor contornava barreiras como a janela que, fecha-da, tentava impedir a invasão daquela quase incandes -cente luz amarela. Os fiapos luminosos que se imiscuíam
pelas frestas de madeira reafirmavam uma vitória — não
havia como escapar do abafamento provocado pelo sol da
tarde que se impunha à trincheira formada pela fileira de
casas dispostas do outro lado. O barulhento ventilador
Electrolux tornava-se quase um aliado do inimigo ao dis -seminar o ar pesado por todo o ambiente. A quentura da -quele verão parecia isolar o quarto, ocupava todos os seus
espaços. Pouco ali penetrava, apenas fragmentos da vila,
da rua, do mundo. Sinais esparsos, sons pouco definidos,
distorcidos; palavras soltas, desconexas. Tudo se derretia,
perdia forma, se mesclava a outros elementos: os choques
das panelas contra o mármore da pia, o jorro da água que
saía da torneira, a percussão da palha de aço que, empu -nhada por Lilina, removia restos de feijão, arroz e gordura.

O chiado do rádio de alguma vizinha que alardeava can -ções populares. Um ou outro grito de criança, um latido.
Sintomas de broncas, brincadeiras, sustos, um chute, um
gol, uma pipa cortada. Ecos dispersos, desconcertados,
fundidos. Seria impossível determinar a origem exata de
cada ruído, de cada parte do todo. Partículas de poeira
dançavam suspensas em fachos dourados que atingiam o
chão de madeira, a colcha de chenile, o armário revestido
de fórmica. Sentado na cama do quarto, Frederico sentia
a trilha que o suor abria a partir do alto de sua cabeça. As
gotas desciam pelas têmporas, contornavam as mandí -bulas até chegar ao pescoço e ao peito magro. Não fazia
questão de enxugá-las. Preferia se imaginar apartado,
imune aos efeitos do verão e dos barulhos daquela tarde.
Como se recolhido a uma tenda, teimava em resistir à
temperatura, aos gritos, aos sons do rádio, à incompre -ensão, à lógica da rotina doméstica reafirmada pelo jorro
de água sobre as panelas. Erguera em torno de si uma
espécie de bolha semelhante à que, vira na TV, permitia
a vida de uma criança cujo organismo seria incapaz de
resistir às ameaças dos micro-organismos dispersos pelo
ar. Sua bolha não era física, visível, palpável, mas ninguém
— filhos, netos, vizinhos — duvidava de sua existência.
Todos conheciam a necessidade de respeitar aquele exílio
voluntário que ele volta e meia construía. Era apenas a
última de uma sequência de bolhas em que, ao longo dos
anos, se protegera. Casamatas em que cultivava anticor –
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pos contra a pobreza, a vulgaridade, a mediocridade do
serviço público malremunerado. Barreira que também o
resguardava de alguns dos sucessivos problemas ligados
ao casamento, à mulher, aos filhos — tantos, meu Deus.
Óbices que ao longo da vida o impediram de aprofundar
seus estudos, de tornar-se um pianista. Não conseguira
frequentar aulas regulares, sequer amealhara o suficiente
para adquirir um piano de armário. Chegara a alugar um
destes para o pai que, na velhice, fora morar com eles
na casa da Sousa Cerqueira. Morto o pai, foi-se o piano,
um luxo, uma afronta, reclamava a Lilina, mulher com
os pés cravados no chão, depositária de todos os medos
e aflições, incapaz de perceber a grandeza das melodias e
dos acordes que o retiravam daquelas sucessivas e pobres
casas de Piedade, nas ruas Sousa Cerqueira, Lima Barreto,
Belmira. O revezamento de endereços era apenas ilusório,
ele não saía do mesmo lugar, dos mesmos limites. Velho,
não podia mais fugir em sua moto, procurar consolo em
uma ou outra corista ou polaca. Construíra as bolhas
da mesma forma com que, agora, ousava lançar mais
uma ponte. Era preciso ao menos tentar quebrar outros
obstáculos, estes, mais fortes, construídos por mãos e
cérebros poderosos, que não admitiam intromissões,
visitas indesejadas. Sentia-se capaz de redigir uma nova
carta, uma outra tentativa

Excelentíssimo Senhor João Baptista Figueiredo
M. D. Presidente da República Federativa dos Estados
Unidos do Brasil

Acompanhando de longa data a brilhante trajetória
de V. Excia. à frente do Governo, tenho sentido, como a
maioria do povo brasileiro, as medidas eficazes impostas
em prol de um Brasil cada vez mais forte. Um dos setores
mais em evidência é, sem dúvida, o que diz respeito à
educação e às artes em geral.

Feitas as considerações acima, animei-me a traçar
estas linhas a fim de expor a V. Excia. o seguinte: sou filho
de um artista brasileiro, maestro Julio Reis, homem esse
que desde a infância dedicou-se ao cultivo da música,
pois foi pianista, organista, compositor e crítico musi-cal — compôs durante sua existência inúmeras peças
musicais, sobressaindo-se, entre elas, o poema sinfônico
Vigília d’armas, poema este que foi inspirado em quadro
do célebre pintor francês Detaille.

Senhor Presidente, como sou modesto funcionário
público aposentado, nunca me foi possível realizar a
execução de qualquer trabalho artístico deixado por meu
pai, motivo pelo qual ouso solicitar a V. Excia. o patro-cínio a fim de que Vigília d’armas possa ser executada
por alguma orquestra do Brasil.

tas cartas mais seriam necessárias? Quantos en-velopes, quantos cartões de aviso de recebimento, quantas
13
respostas protocolares, quantas ausências de, até mes -mo, respostas protocolares? Governadores, presidentes,
embai xadores, diretores de jornais — mais uma vez,
sentara-se diante da Olympia portátil emprestada pelo
genro e demonstrara a agilidade aprendida em décadas
de serviço público. Poderia datilografar sem olhar para
o teclado, escrever de olhos fechados, até sem pensar. As
palavras, afinal, se repetiam; a mesma história, o mesmo
pedido. Mudanças apenas no cabeçalho, na forma de
tratamento — Excelentíssimo, Ilustríssimo, Digníssi -mo. Depois, vinham os fartos elogios ao destinatário, a
apresentação do pai, a introdução do pedido de ajuda, a
renovação dos protestos de elevada estima e real consi -deração. Cartas, cartas, cartas. Cartas que ao menos lhe
permitiam afastar-se por algumas horas daquele calor,
daquela mediocridade, dos gritos de crianças e de suas
mães, das discussões que transpunham as paredes daque -las 18 casas e invadiam o espaço público da vila. As cartas,
assim como os programas da MEC captados pelo rádio de
pilha forrado por courino vermelho, traziam alívio, reno -vavam a esperança; era como se, por alguns momentos,
pudesse flutuar sobre as dificuldades, a falta de dinheiro,
as mesquinhas preocupações com o dia a dia. A expec -tativa de uma resposta positiva lhe permitia suportar a
sordidez das músicas vomitadas pelas rádios, barulheira
sem sentido, desprovida de harmonia, de talento. Canções
que traziam glória e dinheiro para analfabetos cabeludos
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que se sucediam em programas de auditório, homens que
acumulavam fortunas berrando versos incompreensíveis,
sem sentido ou inspiração. Uma ínfima parcela do que eles
faturavam bastaria para levar ao palco uma orquestra de
42 professores capazes de executar aquela partitura que,
ao lado de tantas outras, envelhecia no interior de um
caixote preto que ele mesmo fizera. Um concerto de gala
que revelaria o tesouro escondido por quase meio século
e que representaria a compensação por tantas decepções e
carências. Que redimiria sua vida previsível e sem graça,
marcada pela alternância de repartições, de incontá -veis chefes, de uns poucos subordinados. Um resgate do
tempo em que sonhava repetir o pai, tornar-se músico,
encantar plateias, conquistar cantoras e atrizes. Noite que
o reabilitaria até diante dos filhos, netos, genros, noras,
vizinhos e de Lilina. Todos eles perceberiam o porquê da
distância, da frieza, da dificuldade para exercitar o papel
de pai e de marido. Filhos, genros, noras, netos, Lilina:
agora vocês entenderiam, não podia furtar-me à missão
maior, ao compromisso com meu pai, com a música, com
a arte. Agora vocês compreenderão meu distanciamento,
minhas ausências, a dedicação ao piano, minha ojeriza
aos batuques, ao carnaval. Tudo isso era em nome de
algo maior, que em tudo suplanta esta vidinha apertada,
essas casas, esses gritos, essas rádios, esses tambores e
essa histeria. Vocês todos irão comigo ouvir a obra de
meu pai, abriremos crediário na Exposição, na Mesbla,
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compraremos roupas e sapatos novos, partiremos de táxi
até o Municipal. Basta uma resposta, uma carta, um sim,
um aperto de mãos.

rico não conseguia ler a intricada partitura de
Vigília d’armas, seus precários conhecimentos musicais
faziam com que se limitasse à execução de peças ligeiras,
triviais. Isto, quando dispunha de um piano. Mas tinha
certeza da qualidade da obra deixada por Julio Reis. Ouvi -ra elogios da boca daquele famoso maestro — fora levado
ao encontro por um de seus netos, jamais esqueceria o
veredito: “A obra do seu pai é inspirada, poética, merece
ser executada.” Naquela noite, estimara o fim de sua luta.
Atravessara a passarela sobre a Estação de Piedade com
a certeza de que aquela sinfonia voltaria a ser ouvida em
algum teatro ou mesmo em um grande concerto ao ar
livre. O maestro era um homem conhecido, famoso, ti -tular de uma sinfônica. Obra inspirada, poética — claro,
em breve iria para as estantes dos músicos. Mas, depois
daquela conversa, o maestro sumiu, deixou de atender
ligações, parecia não receber os muitos recados. Seria
preciso fazer novas cartas, novos pedidos. Necessário
também reforçar as apostas, acompanhar os jogos, os
prognósticos, acalentar os sonhados 13 pontos. Acertaria
os resultados das partidas, as zebras, ganharia na loteria
esportiva, faria a orquestra entrar em campo. Não queria
dinheiro, pagamento de direitos autorais. Desejava apenas
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reencontrar aquelas notas, aqueles acordes que, rapazo -la, ouvira enfurnado em uma das cadeiras de primeira
classe da plateia do Lyrico, um programa organizado pela
Sociedade de Concertos Sinfônicos. Como gostaria de
poder dar vida àquele conjunto de notas, fusas, semifusas,
colcheias, bemóis, sustenidos. Não desistiria de tentar
voltar a ouvir os sons criados por seu pai.

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