Marchinhas para quem quiser
Por Fernando Molica em 22 de dezembro de 2014 | Comentários (0)
Estação Carioca, O DIA, 29/9:
‘O bancário rala muito e ganha pouco/ Pouco, pouco, pouco’, a versão de ‘Pegando fogo’ era cantada diante de uma agência bancária na Rua Voluntários da Pátria. Acompanhado por quatro músicos idosos, o cantor sindicalista tentava animar a campanha salarial da categoria com paródias de antigas marchinhas de carnaval.
Carioca por excelência, a marchinha representa um paradoxo, é velha e nova ao mesmo tempo. Velhas porque quase todas que ainda fazem sucesso foram compostas há 60, 70 anos — a caçula do grupo já completou, com sobras, três décadas de vida. Mas todas recuperam a juventude a cada carnaval.
É como se passassem onze meses congeladas naqueles potes esfumaçados que guardam óvulos e cordões umbilicais. Às vésperas do Carnaval, são colocadas no micro-ondas e, embaladas por clarins e trompetes, se espalham, serelepes, pela cidade. Quem conquista novos fãs a cada ano, passa de boca em boca durante os dias de festa e ajuda a levantar o ânimo e as forças de tanta gente não pode ser chamada de velha.
Desde os anos 1970 que volta e meia surgem iniciativas para renovar o repertório de marchinhas — todas fracassam, viram piada de salão. Talvez porque a simplicidade e a certa inocência de canções carnavalescas sejam incompatíveis com os novos tempos. Não dá pra dizer para uma jovem contemporânea que a casa vai cair caso ela faça um programa no Joá, seria inadmissível, hoje, questionar a sexualidade do Zezé (ou a da Zazá) ou exaltar o machismo do Rei Zulu, que “tem mulher pra chuchu”. Isso, sem falar do racismo explícito de “Mas como a cor não pega, mulata/Mulata eu quero o teu amor”.
Como os vinhos de regiões demarcadas, marchinhas têm uma espécie de selo de procedência — são consideradas como tais apenas as compostas no Rio entre 1930 e 1965. Como se trata de carnaval, são admitidas exceções relacionadas a tempo e espaço, é impossível não abrir alas, por exemplo, para Chiquinha Gonzaga. São canções que têm a marca do passado, que nos ligam à história da cidade, do país ao que de bom e de ruim havia em outros tempos.
Cantar este passado não significa desejar sua volta, revela apenas nosso desejo de mantê-lo vivo. Marchinhas são como prédios antigos, foram tombadas pelo nosso carinho, pela vontade de preservar e de passar para outras gerações uma deliciosa história afetiva e cultural que renasce a cada mês de fevereiro. De tão incorporadas à nossa vida, marchinhas ajudam até a sassaricar uma campanha salarial.