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O Botafogo continuará a ser meu


Por Fernando Molica em 25 de dezembro de 2021 | Comentários (3)

Alguns amigos perguntam o que achei da venda do Botafogo. Acho um negócio meio esquisito, mas, pelas condições, inevitável. Clubes são resultado de decisões comunitárias, todos são criados por um grupo de amigos, vizinhos, correligionários. Não são fundados por uma pessoa, mas por um coletivo.

E o Botafogo de futebol – na prática, o que está sendo vendido – nasceu de maneira poética, é fruto do arroubo de alguns adolescentes que se reuniam no Largo dos Leões. Uma criação quase mitológica, que se encaixa tão bem nos textos de Paulo Mendes Campos sobre nossa paixão em comum.

Há muito que os grandes clubes deixaram de representar apenas determinados grupos ou comunidades, ainda que mantenham alguns pontos desse DNA. Descendentes de portugueses são, majoritariamente, vascaínos. Por ter sido criado na Zona Norte, por imigrantes ligados ao comércio, até hoje o Vasco tem uma torcida reduzida na Zona Sul.

Os clubes que ficaram presos às suas comunidades foram perdendo força, casos de Bonsucesso, Olaria, Campo Grande, São Cristóvão – que, não por acaso, carregam seus bairros de origem em seus nomes (essa é outra característica curiosa do futebol carioca, percebida também no Botafogo e no Flamengo, instituições que, ao longo dos anos, superaram as limitações geográficas originais).

Por conta do crescimento, os grandes clubes superaram seus fundadores, são muito mais representados por suas torcidas do que pelos seus sócios, frequentadores de suas sedes. Isso, na prática, já representou um rompimento com suas origens. Eles cresceram, ganharam o mundo, que bom.

De alguma forma, os clubes passaram a pertencer – não apenas no campo simbólico – aos seus torcedores, mesmo que estes não fossem sócios das respectivas agremiações. A pressão exercida sobre dirigentes reforça essa ideia de pertencimento, o quem manda aqui somos nós.

Mas, enfim, o mundo mudou, futebol virou um grande negócio, gigantes europeus pertencem a empresas, conglomerados, e nem assim deixaram de ter torcedores. O amadorismo que resistia à profissionalização tem a ver com o amor, mas também propiciou oportunismo, interesses políticos e roubalheira – muitos e muitos dirigentes ditos amadores ficaram ricos com o futebol.

Há algumas décadas times com características do Botafogo até conseguiam tocar o barco, beliscar títulos importantes. O problema é que, por conta de diversos fatores – entre eles, o pagamento das cotas de TV, valores que há até pouco tempo eram baseados apenas no tamanho das torcidas -, o futebol brasileiro ficou mais hierarquizado. Hoje, poucos times podem sonhar com o título do Brasileirão – triunfos de equipes como Guarani, Coritiba, Sport e Bahia ficaram para trás.

Nas atuais condições, o Botafogo não teria como repetir a vitória de 1995, estaria condenado a lutar para ficar na Série A, a batalhar por uma vaga na Sul-Americana e a sonhar com uma Pré-Libertadores. É muito pouco. Futebol é competição, envolve investimentos e busca de títulos, não dá para viver na base do hors-concours, o Botafogo não pode ser apenas um retrato na parede.

É constrangedor almejar ser vendido, ficar como as crianças pobres que, no Peru, há uns 30 anos, ofereciam bugigangas aos turistas aos gritos de “Compra-me, señor”. É meio como estar na calçada, na batalha, torcendo para ser chamado por um senhor rico, a bordo de um carrão. Não é bom, mas era isso ou o fim. A questão agora é torcer para que a diretoria do Botafogo tenha brigado para colocar no contrato pontos que garantam o investimento no time e a preservação da marca e dos símbolos alvinegros.

O Botafogo sempre foi meu, apesar dos muitos dirigentes desprezíveis que passaram por lá – um deles, o pior, chegou a vender nossa sede e nosso estádio. Continuaremos botafoguenses, nossa estrela seguirá nos conduzindo. O Botafogo, a sua história e a memória de cada um de nós permanecerão, a despeito dos novos donos do futebol do clube. E, agora, teremos a perspectiva de um futuro.

Continuarei a ser dono do dia em que meu pai me levou para ver o primeiro jogo, em General Severiano; do caderno em que anotava o resultado de todas as partidas; da comemoração dos títulos de 1989 e de 1995; do grito de campeão em 2010 ao lado do filho mais novo (o mais velho viajara para fora do país, me ligou quando eu ainda estava no Maracanã); da ida com os dois filhos à inauguração do hoje Nilton Santos; do autógrafo do Nilton Santos; da comemoração, na arquibancada, da volta à Série A; da gaveta que guarda dezenas de camisas do clube – continuarei a hesitar na hora de escolher a que me levará ao estádio e abrirá caminhos para a vitória.

Continuarei a ser dono dos dribles do Garrincha, dos passes do Didi, da força e da técnica de Jairzinho, da rebeldia de Paulo Cézar e Afonsinho, do brilho solitário de Mendonça, das provocações e da pontaria de Túlio e de Loco Abreu. Continuarei a ser dono do que mais me define, do fogo no meu peito que nunca vai se apagar.

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Comentários
11 de janeiro de 2022

Obrigado, Ricardo. Saudações alvinegras!

Fernando Molica
07 de janeiro de 2022

Cara, que texto mais lindo, sensível e preciso. Resta-nos torcer para o sucesso dessa operação e pela reestruturação do futebol do Botafogo, da base ao profissional.

Eduardo Samico
29 de dezembro de 2021

Lindo texto. O Botafogo será sempre de sua apaixonada torcida. Fomos escolhidos e isso é difícil de explicar. Que seja um renascimento para o nosso amado Botafogo.

Ricardo Pasini