O eterno retorno de um outro Nelson
Por Fernando Molica em 15 de julho de 2013 | Comentários (0)
Coluna Estação Carioca, jornal O DIA, 29/5:
Companheiro de uma mulher bem mais nova, ele chega em casa e encontra a prova da traição: o cigarro deixado no quarto é da marca preferida pelo amigo. Parte para a vingança? Não, cita seus cabelos brancos para justificar o perdão a “uma criança” e deseja que o sujeito viva em paz com aquela que manchou seu nome. A solução parece inusitada apenas para quem não conhece um pouco da obra de Nelson Cavaquinho (1911-1986), um dos maiores compositores da música brasileira e que, com Guilherme de Brito, fez uma parceria do nível João Bosco e Aldir Blanc, Tom e Vinicius, Pelé e Coutinho.
‘Notícia’ (composto com Alcides Caminha e Nourival Bahia) é apenas um dos grandes exemplos dos dribles que Nelson/Garrincha pregava no óbvio, no senso comum. Suas canções, quase todas noturnas, melancólicas, transpiravam ceticismo, não cultivavam ilusões. Sua poesia vinha da dureza do mundo, da quase certeza de ser esquecido depois da morte (“Se alguém quiser fazer por mim/que faça agora”, ‘Quando eu me chamar saudade’). A inevitável passagem desta para a supostamente melhor era ressaltada nos mais improváveis momentos: “Quando eu passo/perto das flores/Quase elas dizem assim:/Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim” (‘Eu e as flores’, com Jair do Cavaquinho).
Rei vadio, dono das calçadas, íntimo da madrugada e dos becos, chegou a compartilhar a autoria de algumas músicas apenas para pagar a quem o socorrera com um prato de comida ou com um quarto em algum hotel do Centro. Sua festa era breve, a tristeza — ao contrário do que cantou em ‘Minha festa’ — não acabava. Que sorrisos saíssem do caminho, ele precisava passar com sua dor. Por falar nisto: ‘A flor e o espinho’, de Nelson-Guilherme, merece ficar numa daquelas cápsulas do tempo que testemunham, para gerações futuras, o melhor do que já foi feito pela humanidade.
Talvez nada defina tão bem o espírito do compositor do que ‘Rugas’ (com Augusto Garcez e Ari Monteiro), aquela em que, para não morrer cedo, ele diz não pensar muito na vida. No samba, admite esconder sua mágoa, finge-se alegre, ressalta que nunca ninguém o viu com os olhos rasos d’água. No último verso surge a impiedosa e derradeira estocada. Dá um chega pra lá no chavão que associa felicidade ao saber viver e dispara, certo da onipresença da dor: “Feliz aquele que sabe sofrer.”