WWW.FERNANDOMOLICA.COM.BR

Blog

PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

O tal do diploma


Por Fernando Molica em 17 de junho de 2009 | Comentários (14)

A derrota da exigência de formação superior específica para o exercício do jornalismo não chega a ser uma surpresa. O placar – 8 a 1 – foi talvez mais elástico do que o previsto, mas o resultado do jogo era previsível. É o desfecho de uma campanha iniciada há cerca de 25 anos pela “Folha de S.Paulo” e que, posteriormente, foi adotada por outras empresas. Mesmo entre a categoria, muita gente boa passou a condenar a limitação para o exercício profissional estabelecida em lei.

Alguns fatores foram decisivos para a vitória. O Ministério Público, autor da iniciativa de questionar a exigência do curso específico, soube usar uma tese canhestra, porém de grande impacto: a liberdade de expressão não poderia ser limitada. O argumento é falho, quem exerce o jornalismo sabe que não somos pagos para dar opinião. O decreto-lei hoje derrubado não impedia que profissionais de outras áreas se manifestassem em jornais e revistas. É só conferir as páginas de opinião para se comprovar isso.

A “Folha”, além de levantar a lebre, teve também uma grande sacada ao batizar a campanha. O jornal não falava em formação profissional específica, mas em diploma. Soube reduzir o assunto a um aspecto cartorial, à posse de um canudo. Ter ou não ter o papel passou a ser a questão. Explorou também o caráter supostamente discriminatório da exigência, um argumento falacioso: universidades foram feitas para democratizar conhecimento. Não sei se eu, suburbano, filho de um contador e de uma dona de casa, teria conseguido chegar a uma redação de jornal se não tivesse cursado uma faculdade específica. A exigência legal – não apenas ela, claro – ajudou a profissionalizar o exercício do jornalismo, a democratizar suas portas de entrada. A formação que tive na universidade não chegou perto do ideal, mas foi a melhor que poderia ter tido, era a única – formal ou informal – que estava ao meu alcance. Não era parente ou amigo de jornalistas, não tinha qualquer pistolão. O curso universitário serviu como uma credencial para que eu pudesse ser recebido na primeira redação em que entrei para pedir um estágio. Isso ocorreu comigo e com muitos e muitos colegas.

A questão corporativa foi muito explorada. Isto, como se apenas os jornalistas tivessem essa postura. Em nenhum momento, se questionou a exigência de formação específica superior, assegurada por lei, para o exercício de outras profissões. Há reserva de mercado para arquivistas, economistas, profissionais de relações públicas, bibliotecários, secretários executivos, economistas domésticos. E, claro, para advogados: de acordo com Estatuto dos Advogados, criado pela própria corporação e que virou lei, uma pessoa não formada em direito não poderá sequer fazer a prova da OAB que o habilitaria a conquistar o direito de advogar. Mas não ouvi ninguém falando em acabar com a exigência de diploma para secretários executivos ou economistas domésticos.

Um bom argumento também foi o da vocação, como se não houvesse médicos, engenheiros, químicos e advogados vocacionados. No caso dos jornalistas, a vocação seria suficiente para um bom profissional. Não faltam, claro, exemplos de ótimos jornalistas não-formados em universidades. Pessoas vocacionadas, que tiveram sim uma formação específica, dentro das redações. Um processo ainda mais restritivo que o dos cursos de jornalismo. A universidade, insisto, democratizou essas oportunidades.

Nessa questão da vocação, o curioso é que só se falava nos grandes jornalistas sem-diploma. Nos ótimos exemplos de grandes profissionais que nunca cursaram jornalismo. Profissionais que se constituem mais em exceção do que em regra. Os defensores do fim do curso específico não trataram dos picaretas que enchiam redações, dos repórteres graneiros, coniventes com a polícia, com os políticos que lhes permitiam acumular o emprego no jornal com uma sinecura em alguma repartição pública. Nelson Rodrigues – um grande jornalista sem-diploma – soube retratar muito bem alguns dos péssimos profissionais com que conviveu. Insisto também: a exigência do curso específico ajudou no processo de profissionalização da imprensa exigido pelo próprio desenvolvimento social.

A goleada no Supremo também pode – desconfio – ser atribuída à crescente má vontade do judiciário com os jornalistas. Antes intocáveis, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores passaram também a ser alvo de matérias. O relator do caso no STF, ministro Gilmar Mendes, foi um dos que tiveram muitas atitudes questionadas por jornalistas. Pode ser – pode, é apenas uma ilação – que isso tenha contribuído para a goleada. Juízes devem ser justos, mas sempre serão humanos.

As entidades representativas dos jornalistas também têm um papel relevante no resultado da votação. Elas, em momento algum, reconheceram a, de um modo geral, péssima qualidade dos cursos de formação profissional. Aferraram-se à defesa ampla, geral e irrestrita do diploma (sim, adotaram a denominação patronal para a questão) e não tiveram jogo de cintura para reconhecer os sinais de mudança. Mudança na correlação de forças e na própria sociedade. A internet confundiu os papéis, os jornalistas perderam o monopólio de informar – ninguém precisa de registro profissional para abrir um blog. Esse fenômeno foi ignorado. Procurou-se apenas bater pé pelo diploma e, se possível, ampliar sua exigência para outras funções nas redações. Pior: há alguns poucos anos, a Fenaj apresentou um projeto de criação de um conselho profissional mais preocupado em punir jornalistas do que em incentivar a qualificação e o bom exercício profissional. Não podia dar certo.

A Fenaj e os sindicatos de jornalistas também erraram ao não admitir a possibilidade de criação de cursos de pós-graduação que possibilitassem a concessão do registro de jornalista a profissionais formados em cursos superiores de outras áreas. Isso seria benéfico para a categoria, para os veículos, para o público. Isso também contribuiria para pressionar os cursos de graduação em jornalismo, que perderiam assim seu monopólio.

E agora? Acho que haverá poucas mudanças nas redações sérias. Por pior que sejam as faculdades de jornalismo, é melhor contratar alguém que, pelo menos, se mostre animado em seguir uma profissão tão esquisita e que já domine alguns de seus fundamentos. Em seu livro “Os jornais podem desaparecer?”, Philip Meyer diz que, nos Estados Unidos, 79% (cito de cabeça) dos jornalistas que trabalham em redação são formados em jornalismo. Muitas faculdades de jornalismo devem fechar – o que é ótimo, a maioria nem deveria ter sido aberta.

Imagino que as consequências mais graves ocorrerão no serviço público. Com a desregulamentação absoluta, pode ser que voltemos à situação criada há alguns poucos anos, por esta mesma ação agora julgada em definitivo: qualquer pessoa – quer uma, mesmo que analfabeta – tinha o direito de requerer seu registro de jornalista. Se a lógica permanecer, será fácil preencher vagas de jornalistas com os apadrinhados da vez – isso, insisto, principalmente no serviço público: empresários não gostam de jogar dinheiro pela janela.

Enfim, não vejo grandes motivos para lamentar ou comemorar. Acho que teremos uma experiência interessante pela frente. E torço para que a sociedade brasileira – e aí incluídos seus meios de comunicação – se mostre disposta a lutar contra outras reservas de mercado no país. Até para não pegar mal, para não parecer perseguição.

DEIXE SEU COMENTÁRIO

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Comentários
05 de julho de 2009

Sou estudante de Jornalismo e, como muitos, estou contra a decisão da não obrigatoriedade do diploma. Además de todos os seus argumentos e dos comentários das pessoas, é importante salientar que estamos vivendo novos tempos. Antigamente, havia mais profissionais nas redações. O texto, então, passava pelo crivo de diversos outras jornalistas. Hoje, ao contrário, as redações estão cada vez menores, e não é difícil acontecer de um texto ser publicado sem ter passado pelo olhar de ninguém. Com isso, os jornalistas são mais responsáveis ainda pela matéria que publicam. Há alguns anos, havia bons profissionais que apuravam, mas que não sabiam escrever, e outro jornalista escrevia para ele, ou muitos reliam este texto. Hoje, os jornalistas, cada vez mais, têm mais tarefas e cumprem diversas funções. Ele tem que saber escrever, pensar na pauta, apurar, pensar em fotos, diagramação, editar seu próprio texto etc. Por isso, acredito ser de grande falha comparar os jornalistas do passado com os de hoje. Parabéns pelo blog. Visito sempre, e gosto muito do que leio.

Flávia Menna Barreto
25 de junho de 2009

Olá, Molica! Sou estudante de jornalismo e a decisão foi motivo de tremendo "rebú" nos corredores da universidade. Grupos se formaram, as pessoas ficaram divididas: ou a não exigência do diploma valoriza ainda mais o profissional formado, ou representa dinheiro e tempo perdidos em sala de aula. Na verdade, acredito que essa história ainda vai rolar por um bom tempo. Não é possível que empresários (digo, donos de universidades) e representantes de sindicatos ficarão de braços cruzados por muito tempo. Quanto à "perseguição"... uma boa situação a ser pensada e questionada. Afinal, não vivemos mais na ditadura e sua censura... a solução foi, na cabeça Supremo, "democratizar" a profissão. Obrigada!

Narayanna Borges
23 de junho de 2009

Oi, Sonia. Tudo bem? Bom ter notícias suas. Pois é, acho que o clima Fla X Flu atrapalhou muito esse processo. Concordo que deverá ocorrer uma bem-vinda depuração na quantidade e na qualidade dos cursos de jornalismo. Afinal, não nos cabe defender o diploma em si, mas estimular a boa formação dos jornalistas. Boa sorte por aí. bjs.

Fernando Molica
22 de junho de 2009

Parabéns pela ótima análise, Molica, inclusive por apontar os erros estratégicos cometidos por algumas entidades que nos "representam". Gostei especialmente de você ter chamado a atenção para as oportunidades que a obrigatoriedade do diploma abriam no mercado de trabalho jornalístico, não só para suburbanos como nós. Isto fica mais claro ainda pra mim agora que estou recomeçando a vida acadêmica em uma universidade federal do Nordeste (UFS). Mas, ao contrário do pessimismo que está imperando neste primeiro momento de perplexidade, tendo a achar que a decisão do STF pode ter pelo menos dois efeitos colaterais positivos: conter a expansão das "fábricas" privadas de jornalistas, que vinham proliferando como franquias de lojas (afinal, quem vai querer pagar no mínimo R$ 300 por mês, durante 4 anos, por um diploma que não vale mais nada?); e obrigar as instituições sérias a repensarem suas estruturas curriculares e seus projetos pedagógicos. Meros fazedores de notícias serão mão de obra descartável. E para isso, de fato, faculdade não faz falta. Mas jornalistas que pensam, investigam, contextualizam, improvisam e ainda por cima escrevem bem terão sempre muita chance de conquistar um lugar ao sol. E esse profissional uma boa universidade é capaz de formar. Se nos EUA, onde a profissão não é regulamentada, a presença de jornalistas com diploma nas redações vem aumentando, porque aqui diminuiria??

Sonia Aguiar
19 de junho de 2009

Achei seu comentário perfeito.

Wilian Miron
19 de junho de 2009

Molica, Acho que você acertou na mosca quando atribuiu ao fim da exigência de diploma questões políticas.Essa história da "vocação" também é um horror. Vi um dos ministros do STF (não me lembro qual agora) dizendo que jornalismo era quase uma "arte", "quase literatura". É demais, ao desqualificar a formação, desqualifica em seguida o sujeito. Se qualquer um pode escrever e dizer qualquer coisa, com quem está a verdade então? Acho que o maior perigo é esse, a imprensa começar a ser vista como uma série de compadrios apenas.

Giovanna
19 de junho de 2009

Olímpio, acho que, no mercado privado, pouca coisa vai mudar. Talvez ocorra um processo maior de, digamos, exploração dos estagiários. A partir de agora, eles - como qualquer outra pessoa - podem assinar matérias, fazer o trabalho de um profissional. Mas não acredito que as empresas, pelo menos as mais sérias, abram mão de profissionais qualificados. O problema é que há uma grande distância entre os jornais das grandes cidades e os do interior. A regulamentação profissional ajudava a manter um certo equilíbrio. Há também uma questão fundamental: o mais importante não é o diploma em si, mas a qualificação que ele atesta. Temo uma certa confusão na área pública, na contratação de assessores, com ou sem concurso público (pelo jeito, o sujeito não precisará ser diplomado para tentar uma vaga de jornalista em órgãos públicos). Ah, em tempo: o Ali Kamel, que você cita, é jornalista formado, foi repórter por um bom tempo.

Fernando Molica
18 de junho de 2009

Ótima questão, Luiz. Sem dúvida: vamos acabar com mais esse entulho autoritário! Balanços na rede, com acesso livre para todos! Claro que os jornais não serão contra essa democratização da informação - isso tem a ver com a lógica da decisão do STF de garantir liberdade de expressão, um princípio constitucional. Por que defender os feudos? abs,

Fernando Molica
18 de junho de 2009

Muito lúcido o seu texto, Molica. Realmente, não dava para defender o diploma cegamente, quando os cursos de jornalismo são tão deficientes. Gostei de tudo que você mencionou. Suponho que as mudanças acarretadas pelo fim da obrigatotiedade do diploma serão lentas, mas surpreendentes. Só acho que a Folha e a ANJ poderiam atentar para outros "carteis"... Por que não derrubar, por exemplo, a obrigatoriedade de se punblicar os balanços da empresas em jornais? Se as páginas das empresas e da própria CVM na internet já são acessíveis a todo o mundo, 24 horas por dia, por que manter essa milionária "bolsa-balencete" para meia dúzia de empresas jornalísticas, não é mesmo? Um abraço!

Luiz Bello
18 de junho de 2009

Grande Molica, Assino embaixo. Acabei de sair da faculdade onde dou aulas, aqui em Brasília, e a garotada se sente em terra arrasada. Dezenas de estudantes vieram me perguntas se devem largar o curso e se formar em história ou ciência política. Acho lamentável, como você, a decisão do STF. Sabia que o diploma iria cair. Afinal, como você bem apontou, essa é uma batalha que vem sendo travada há duas décadas. Mas, confesso, fiquei surpreso com placar: 8 a 1 é uma lavada. Pô, até arquivista tem que ser diplomado... A profissão de prostituta está em discussão no Congresso. E aí somos nós, escravos da reportagem, que ralamos num banco de faculdade, é que pagamos o pato em nome da liberdade de expressão, como se os Mainardis e Kamels da vida fossem também jornalistas? Não fiquei sem ação, mas acho que será o início do fim do jornalismo que ajudamos a fazer nos últimos 20 anos. Um abração

Olímpio Cruz Neto
18 de junho de 2009

Caro Thiago. Você tocou num ponto importante: até que ponto a decisão de ontem não vai afastar bons candidatos ao curso de jornalismo? Até este ano, o curso era um dos mais procurados em universidades importantes, como a USP e a UFRJ. Vamos ver o que acontece. Abraços, obrigado, apareça. Molica

Fernando Molica
18 de junho de 2009

Fernado, Pelo twitter tive o prazer em “cair” no seu blog. Eu, como estudante de jornalismo, penso qual será o incentivo que os bons alunos, saídos do ensino médio, terão em exercer uma profissão a qual o diploma não é exigido. Quando temos 17 anos e prestes a entrar na faculdade, somos mais inseguros que meu avô de 85 anos ao atravessar a rua. E como esclarecer para esses alguns jovens talentos que mesmo o diploma não valendo “nada”, vale a pena ingressar no curso de jornalismo. Possivelmente perderemos bons futuros profissionais para outras áreas. Claro, que agora poderemos pensar num enxugamento das péssimas instituições de ensino superior, conforme você mesmo disse. Mas em relação as faculdades? Acho que vai acontecer um esvaziamento da procura mas não acredito que conseqüentemente um melhoramento do ensino. Claro que agora tudo é suposição, futurologia. Mas que mexeu com o brilho mexeu. Acredito que comparar o jornalismo a profissão digna do cozinheiro só poderia partir de políticos que são “cozinhados” pela impressa. Começa uma nova era nas discussões jornalísticas. Quem sabe agora teremos uma classe mais unida?!! Parabéns pelo blog Thiago Theóphilo

Thiago Theóphilo
18 de junho de 2009

Parabéns Molica. Até agora, o único jornalista que falou em nome dos jornalistas e não das empresas pela qual trabalham. Você deve ter percebido pela cobertura nos Telejornais, a força que fizeram as emissoras de TV para fazer parecer que esta aberração do supremo fosse algo positivo. Parabéns, mais uma vez. Como você, minha história também é assim. Em mais de uma década dedicada ao jornalismo, tive acesso aos jornais, TVs e rádios, além de portais pelos quais passei pelo fato de ter cursado a graduação. E tenha certeza, pois já levantei também esta tese em outras situações, e agora a mesma se vê confirmada. Foi uma retaliação do supremo, sobretudo na figura de Gilmar Mendes. Mas somo Jornalistas. Isto, nem eles, nem os grandes conglomerados de mídia que empregaram campanha pela nossa precarieda, podem nos tirar. Um abraço Molica e parabéns por ser, verdadeiramente, um Jornalista. Mais uma vez, você nos traz o fato e não a conveniência.

Eduardo Freire
17 de junho de 2009

Ótimo comentário, concordo com a análise, principalmente em relação a solução de um curso de pós-graduação específico na formação de um jornalista profissional.

Raul Silvestre