Sonhos cariocas
Por Fernando Molica em 26 de junho de 2008 | Comentários (1)
No início de sua resenha sobre “O ponto da partida” (essa aí que está logo abaixo), Nataly Costa toca em uma questão fundamental: como o fascínio exercido pelo Rio influencia na visão que todos temos sobre a violência na cidade. A violência aqui tende a ser mais grave e cruel. Um assassinato no Arpoador, à beira-mar, parece ser mais chocante do que um outro ocorrido no meio do mato, numa periferia. É como se o cenário não se encaixasse no enredo da peça.
Talvez seja meio calhorda dizer isso, mas, lá vai: é como se encontrássemos, 40 anos depois, duas mulheres que conhecemos na flor de seus 20 anos – uma era então linda, a outra, assim-assim. Ambas, claro, terão perdido beleza, mas o estrago causado pelo tempo na que era mais bonita tende a impressionar mais. E ao contemplarmos os sinais do envelhecimento da ex-gata tendemos também a nos olharmos, a percebemos que também perdemos juventude e beleza.
O Rio sempre representou os nossos melhores sonhos: além de linda, a cidade era a capital, porto, centro de convergência de estrangeiros, de artistas e intelectuais. Aqui, como ressalta a historiadora Rosa Maria Araújo, autora, com Sérgio Cabral, de “Sassaricando”, nasceram o choro, o samba, o chorinho e a bossa-nova. Ufa!
iA criação de tantas formas de expressão musical só foi possível graças à uma convivência entre contrários, pretos e brancos, ricos e pobres, brasileiros e estrangeiros – no Rio, e só no Rio, essa convivência razoavelmente pacífica era possível. Hoje, nem tanto.
Ao contemplarmos meio impotentes a decadência da cidade – o processo de feudalização de muitas de suas áreas, o desfile de armas de guerra nas mãos de soldados calçados com chinelos, os meninos e meninas que caçam turistas no calçadão – nos damos conta também de nossas frustrações, a sensação, como diz Nei Lopes, de “Não ter sido nem metade/daquilo que se sonhou” (“Samba do Irajá”).
A decadência do Rio simboliza também o fracasso de muitos de nossos sonhos e projeções. Mas, como disse o José Junior, coordenador do AfroReggae, talvez seja o caso de pensarmos numa divindade hindu que, segundo ele, traz o caos para, depois, reconstruir. Uma deusa dialética, pois. Que consigamos sobreviver ao conflito.
Há um conto do Aníbal Machado que toca nesse tema da perspectiva do envelhecimento. É um texto absolutamente genial, que recomendo. O título é "Viagem aos seios de Duília"
Marcelo