O PRECONCEITO DO REPÓRTER JOÃO DO RIO*
Por Fernando Molica em 17 de junho de 2024 | Comentários (0)
A homenagem da próxima Flip a João do Rio (1881-1921) não pode deixar de tocar num ponto importante da carreira do escritor e jornalista que tão bem desbravou a cidade: em “As religiões no Rio” ele deu uma contribuição importante para o aumento do preconceito em relação a religiões de matriz africana.
É sempre complicado ver o passado com os olhos de hoje, mas num momento em que se acumulam ofensas e agressões físicas a fiéis e a locais de cultos, não se pode negar o papel do homenageado na construção de uma imagem pejorativa que, reciclada, serve de base para tantos agravos.
A série de reportagens depois transformada em livro publicado em 1904 teve o mérito de apresentar cultos desconhecidos de grande parte de uma população majoritariamente católica, mas o preconceito do autor em relação a práticas de origem africana fica evidente — seu olhar é muito mais compreensivo ao descrever e comentar manifestações de fé praticadas por brancos, como no caso das ramificações do protestantismo.
O título da seção destinada às religiões de negros entrega o jogo: “No mundo dos feitiços”. Os rituais que serão descritos — muitos de maneira muito fiel — não passam, portanto, de feitiçaria.
Ao descrever entidades, classifica Exu de “o diabo, que anda sempre detrás da porta”. Apesar de sua origem negra, o escritor não se constrange ao associar negros a práticas condenáveis — os rituais são vistos como manifestações macabras e que visavam, principalmente, arrecadar dinheiro dos fiéis.
Algumas mulheres de terreiros são chamadas de prostitutas. O repórter que foi às ruas em busca do desconhecido demonstrou ter levado um olhar preso à ortodoxia católica dominante:
“Fazer-santo é a renda direta dos babaloxás, mas ser filha-de-santo é sacrificar a liberdade, escravizar-se, sofrer, delirar”, “As filhas-de-santo, prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar dá-lhes o supérfluo”, “As iauô, são as demoníacas e as grandes farsistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes”, “Fazer-santo é colocar-se sobre o patrocínio de um fetiche qualquer, é ser batizado por ele, e por espontânea vontade dele”, “Neste mundo, nem os espíritos fazem qualquer coisa sem dinheiro e sem sacrifício!”, “Os pretos, alufás ou orixás, degeneram o maometismo e o catolicismo no pavor dos aligenum, espíritos maus, e do exu, o diabo, e a lista dos que praticam para o público não acaba mais”.
No texto, João do Rio não poupa também frequentadores ilustres de tais cultos: “A Morte e a Loucura nem sempre se limitam ao estreito meio dos negros. As beberagens e o pavor atuam suficientemente nas pessoas que os freqüentam”. Reclama da postura cúmplice de policiais: “A policia visita essas casas como consultante”.
Sacerdotes estão também entre seus alvos: “Apotijá, o malandro da rua do Hospício (…) tem também uma vastíssima coleção de casos sinistros”. As piores palavras são destinadas a “Assiata”, como ele se refere a Tia Ciata, mãe-de-santo que teve um papel decisivo na comunidade negra carioca e que abriu sua casa para o nascimento do samba. Ela é chamada de “exploradora”. “Não tem navalha, finge de mãe-de-santo e trabalha com três ogans falsos (…) A Assiata mora na rua da Alfândega, 304. (…). Essa é uma das feiticeiras de embromação.”
Como registra João Carlos Rodrigues em seu seu “João do Rio – Vida, paixão e obra” (Civilização Brasileira), na época, sacerdotes de religiões afro-brasileiras acusaram o escritor de ter denunciado os cultos à polícia que já então os classificava de formas de “exploração da credulidade pública”.
Mais do que invalidar a homenagem, o preconceito explícito em textos de João do Rio reforça a necessidade de se buscar uma visão ampla de autores e de suas obras. Homenagear não é santificar, mas apresentar um painel complexo de pessoas que, mesmo vítimas de preconceito — foi barrado no Itamaraty por ser gordo, mulato e homossexual — são capazes de discriminar.
*Artigo publicado no Correio da Manhã, 17/06/2024