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Artigos e outros textos de Fernando Molica

Diálogo norte-sul (Meu nome é Creuza)


A eleição do Rio fornece um mote para que seja aprofundada uma boa discussão sobre a cidade, mais especificamente, sobre a divisão Norte-Sul, subúrbios x Zona Sul. Essa discussão sempre foi meio emperrada pelos estereótipos: de um modo geral, o subúrbio é visto apenas como sinônimo de lugar de gente boa, alegre, casas-simples-com-cadeiras-na-calçada, ou como algo ameaçador, fonte da violência, do funk, do ih-vamos-invadir.

Esses são os aspectos visíveis, exemplos do bem e do mal: a boa convivência na feijoada da Portela, os olhos de horror para a confusão, no entardecer dos domingos de verão, no ponto final do 484, no Posto 6. E que atire o primeiro prato de farofa o morador da Zona Sul que nunca pensou em exilar todos aqueles sujeitos barulhentos no Piscinão de Ramos.

As falas desastradas de Gabeira e sua exploração um tanto quanto exagerada e oportunista são um fato político, relacionado ao processo eleitoral. Mas existe uma constatação maior: a cidade está, mais do que nunca, claramente dividida. Assumidamente dividida, eu diria. Isto fica bem explícito ao compararmos os gráficos de votação das extremidades, Zona Sul e Zona Oeste.

Mas como eu ia dizendo lá em cima. A eleição mostrou que existe uma relação mal resolvida. De um lado, uma Zona Sul arrogante até quando tenta ser solidária e abraça um projeto que aponta para um futuro, digamos, europeu, de civilidade e de convivência. Mas que tem um porta-voz que, em um ato falho, vocaliza que, no fundo, acha que o Rio termina no Túnel Rebouças (algo como “não vou governar só para o Rio de Janeiro”).

No outro lado há um subúrbio ressentido, que não aparece no mapa, como frisou Chico Buarque no seu último CD. Lembro que, quando era criança, ficava irritado ao não ler nos jornais informações sobre os bailes de carnaval que ocorriam na minha vizinhança, no subúrbio. Os jornais só citavam os da Zona Sul, era como se nós não existíssemos. Mesmo assim, o subúrbio já se viu mais integrado à Zona Sul e que, hoje, se sente cada vez mais discriminado. Um subúrbio empobrecido e feio – na minha infância, Piedade era um bairro muito mais bonito do que hoje, mais conservado, cuidado. Morar no subúrbio não era uma condenação, mas (com o perdão da rima), uma opção. Uma alternativa para quem não queria se submeter ao ritmo e à lógica da Zona Sul.

Só que, ao longo dos anos, os investimentos públicos foram sendo concentrados à beira-mar, aplicou-se muito dinheiro para refazer o que estava pronto na Zona Sul – enquanto isso, ainda há ruas não-urbanizadas, não calçadas, no além-túnel. Os efeitos das ondas de recessão foram maiores no subúrbio, muitas empresas fecharam, a violência por lá é mais evidente. Os governantes sabem que a opinião pública é mais organizada na Zona Sul – por aqui moram jornalistas, artistas, políticos. As escolas e os hospitais públicos são melhores nesta parte da cidade.

Deu no que deu: o voto suburbano foi também um voto ressentido. Temo que esta eleição possa aprofundar essa divisão: uma parcela mais reacionária da Zona Sul pode se sentir mais liberada para um discurso preconceituoso e, mesmo, racista. Na campanha, o prefeito agora eleito tratou de ressaltar a divisão, buscou se beneficiar dela. Agora ele tem o desafio de tentar diminuir os antagonismos – até porque ele sabe que dá para ganhar a eleição sem a Zona Sul, mas é muito complicado governar sem ela (é só perguntar para a ex-governadora Rosinha).

Só para ilustrar, aí vai um trecho de uma paródia de “Como uma deusa” cantada, há alguns anos, numa peça-show aqui na Zona Sul, na Gávea, acho. Ela ajuda a entender as dificuldades na relação Norte-Sul.

“Meu nome é Creuza/
Só ando de trem/
E os vale que o Edmílson dá/
Me levam além.

Tão perto das Sendas/
tão longe do Freeway…”

(28/10/2008)

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