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Artigos e outros textos de Fernando Molica

Feios, tristes e desimportantes


Um dos prazeres proporcionados pela leitura de um jornal é a possibilidade que nós leitores temos de fazer a nossa própria edição: ou seja, o folhear meio aleatório, meio sem sentido das diferentes páginas nos permite, quase sem querer, formar um outro todo, que reúne as informações que mais nos chamaram a atenção.

E foi assim, na manhã de sábado, que, pulando de uma página a outra, acabei fazendo a minha edição.

Ainda sonolento, li a notícia sobre a confusão armada na Avenida Atlântica por um grupo de pessoas que deixara uma festa para não permitir que o carro de uma das convidadas, estacionado sobre a calçada, fosse rebocado.

Para ficarmos apenas no fato gerador do bafafá: segundo a reportagem do GLOBO, a dona do carro, Nacyr de Carvalho, tentou impedir o reboque utilizando um argumento singelo, uma releitura do velho sabe-com-quem-está-falando: “Eu estava num jantar de uma pessoa boa, alegre, importante, do governo, e peço a gentileza de os senhores liberarem o carro.” Bem, ela pediu “por gentileza”. Já é um avanço. Mas, enfim, meio sem querer, d. Nacyr deu uma bela contribuição para que se diminua a hipocrisia na relação entre a sociedade brasileira e as leis que esta mesma sociedade, de um jeito ou de outro, aprova.

É simples: trata-se apenas de incluir um adendo no código de trânsito. Algo como “as punições aqui previstas não serão aplicadas quando a infração tiver sido praticada para permitir ao motorista a participação em eventos sociais promovidos por pessoas boas, alegres, importantes e do governo”.

Claro que haveria aí o perigo de subjetividade na hora de aplicação do adendo, por exemplo, a dificuldade de se definir quem é bom, alegre, importante e – claro – do governo (federal? estadual? municipal?). Mas a proposta é boa, representaria mesmo o atendimento a uma espécie de anseio popular em uma sociedade cuja maioria parece menos interessada no respeito à lei do que na possibilidade de conquistar um jeito de ficar imune a ela.

Logo depois de ler a reportagem sobre o carro da d. Nacyr, dei com o artigo de Roni Lima sobre a barbárie de Santa Teresa. No artigo, Roni relacionava crimes hediondos com uma sociedade igualmente perversa. Ele cita alguns sinais desta perversão: “A falta de respeito ao próximo, a falta de culto ao trabalho decente como forma de subir na vida”. Fala também na valorização do jeitinho brasileiro, do sexo sem sentido e da violência sem limites – seja do criminoso, seja do policial.
Pronto, com o artigo do Roni fechei (para usar um jargão jornalístico) a minha edição particular. Lembrei que na véspera um colega de redação dissera ter visto na TV uma entrevista de uma das, vá lá, personalidades presentes na tal festa do reboque. Segundo ele, a senhora contou, rindo, que quando criança adorava jogar ovos nos “paraíbas” que passavam pela calçada. Uma loucura, não?

Anos se passaram, nordestinos não costumam mais levar ovo nas calçadas. Talvez porque as calçadas tenham hoje habitantes mais nobres. Haveria sempre o risco de mirar num paraíba e acertar num Mercedes ou num Audi (não se respeita mais nada hoje em dia, não é mesmo?). Uma lógica que, quando ampliada e acumulada ao longo de tantos e tantos anos, fomenta tragédias como a que foi comentada pelo Roni e por ele associada à falta de respeito ao próximo e à desconsideração do trabalho decente.
A sociedade, o grande espaço público, virou calçada. Serve apenas de estacionamento para carros e de banheiro para cachorros. Este tipo de desprezo não é privilégio apenas dos “bons, alegres etc” mas é mais chocante quando por eles praticado. Talvez por, nestes casos, ganhar o peso de exemplo de boa vida, de objetivo a ser alcançado pelos feios, tristes e desimportantes. O exemplo de que o interesse pessoal deve ser sempre colocado acima do social.

“Onde meus convidados iam estacionar seus carros?”, perguntou a anfitriã da festa. Uma libertária que propõe o desrespeito a leis opressoras? Não, uma defensora, involuntária talvez, daquilo que o senador Roberto Freire chamou de lógica de privatização do Estado.

A apropriação do que deveria ser público é uma espécie de tradição brasileira que se manifesta por todos os lados, nas calçadas da Avenida Atlântica, nos gabinetes da Sudam ou da Sudene.

Bom e educativo jornal, o de sábado passado (e olha que ainda não li outras notícias que vi na primeira página e que certamente irão enriquecer minha edição particular: os desdobramentos da história da CPI da Corrupção e a informação de que 7,3% das crianças do Rio estão fora da escola).

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