O balão de quem manda
Passava das 23 horas do último domingo quando começou o espocar de fogos e tiros. No céu, o motivo da festa: um balão que trazia dependurada a inscrição “Da 12”. Da 12, Gilson da 12, varejista de drogas, dono dos morros do Andaraí e Divinéia, morto pela Polícia Federal há dois meses. Morreu na Baixada, foi velado no morro do Andaraf, na quadra do bloco Flor da Mina. Os jornalistas – a exemplo do que ocorre em velórios de algumas celebridades – não puderam entrar.
O comércio da área foi obrigado a fechar, numa manifestação de luto compulsório. No dia seguinte, outra manifestação de poder: crianças do morro foram colocadas à frente do cortejo para impedir fotos dos sócios de Gilson da 12. Não havia como evitar a presença de fotógrafos no enterro.
Tento fotografar o balão que leva a homenagem. Depois, corro para a câmara de vídeo, que, emprestada, passava uns dias lá em casa. O balão já está muito longe. Vou para a TV conferir o resultado. A fita mostra apenas um OVNI, um objeto voador não-identificado, cercado de riscos coloridos. Mas ficaram gravados os fogos, os tiros e os clarões que continuavam a surgir por entre as luzes do morro.
As imagens lembram outras, igualmente precárias, meio indefinidas e assustadoras. Aquelas, dos mísseis que cruzavam os céus do Iraque, Israel e Arábia Saudita durante a Guerra do Golfo. Novos estampidos fazem contraponto à minha CNN privé. Aqui, â guerra continua. Já estou, de novo, pra cá de Bagdá. De volta ao Grajaú.
Entro no quarto de meus filhos e, como dissera pela manhã Lisa Simpson (aquela de “Os Simpsons”), sinto um “arrepio ético”. E se, o mais velho, de 4 anos, tivesse acordado e me perguntado o motivo da barulheira? Será que eu diria um “nada não, só uma festa para um bandido que morava aqui perto”? Ou será que teria mentido (algo como “mais uma festa pelo Dia das Crianças”)? Bem, ele não acordou. As varandas e janelas que me cercam já retornaram para seus domingos. Quem não decifrou o enigma do “Da 12” deve estar até aliviado – foi só um balão, nada comparável com os tiroteios que costumam varar madrugadas.
Melhor também para os do morro – não houve troca de tiros, apenas uma barulheira danada que durou uns dez minutos. As crianças de lá devem ter acordado – as de 4 anos ou mais certamente já sabem quem foi Gilson, conviveram com ele. Muitas podem até ter trabalhado para ele. Todas devem ter ficado fascinadas com o espetáculo do balão.
Apesar das deficiências do ensino brasileiro, elas não devem ter tido nenhuma dificuldade para decifrar o “Da 12”.
Essas crianças também devem saber quem é o número da vez. A numerologia de subsistência deve ser aprendida com presteza: ao contrário dos grandes atacadistas das drogas, estes, digamos, franqueados, costumam ter vida curta. Gilson morreu com 27 anos.
O território de Gilson da 12 era por ele mesmo chamado de “Cidade sem lei”. A expressão revela orgulho, mas, ao mesmo tempo, apresenta um erro no diagnóstico. Existem leis por lá. Só que são outras, diferentes das que, pelo menos em tese, vigoram fora dos limites daqueles morros. Leis criadas sem necessidade de uma Constituinte, bastante claras e duradouras: resistem melhor à mudança de xerifes que as leis brasileiras às trocas de presidentes. Não é preciso sequer uma emendinha para modificar algo tão simples como um “quem manda aqui sou eu”.
Enfim, foi só o barulho. Afronta por afronta, soltar balões também é ilegal. Mesmo que não homenageiem traficantes. Nada de muito grave, de anormal. Como os seqüestros, os assassinatos, os roubos de carros, cabelos, tênis, mochilas e cestas básicas. Como o extermínio de crianças e jovens. Há anos que dormimos com barulhos como esses.