Tortura
RIO DE JANEIRO _ Há 20 anos, em janeiro de 1976, o presidente Ernesto Geisel substituiu o comandante do então 2º Exército, em São Paulo. A decisão foi motivada pelas mortes, em dependências da força, do jornalista Wladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho.
A atitude de Geisel foi um recado: o governo não admitiria mais nem sequer a acusação de conivência com torturas a presos políticos.
Hoje, a eventual execração pública de um suposto torturador revela que foi criada uma espécie de jurisprudência: a sociedade demonstra, nessas ocasiões, não mais suportar torturas a presos políticos (nem mesmo admite a existência de presos políticos).
A condenação não é, porém, ampla, geral e irrestrita. Afinal, a tortura continua a ser praticada em instituições policiais brasileiras.
Na semana passada, policiais do Rio foram acusados de bater e dar choques elétricos em presos que tentaram fugir de uma delegacia. Os policiais são também acusados de obrigar os presos a praticar sexo oral entre si.
As acusações tiveram repercussão bem menor que a gerada pelas violências contra presos políticos. Talvez porque estes eram, em sua maioria, integrantes de famílias de classe média. Filhos de arquitetos, médicos, jornalistas e mesmo de militares.
Eram gente como a gente: moravam nos nossos bairros, frequentavam lugares semelhantes, haviam estudado nos mesmos bons colégios. A violência contra eles nos revoltava e assustava _poderia ser cometida contra qualquer um de nós.
Os chamados presos comuns são geralmente pobres, acusados de crimes tão comuns quanto eles. Essa violência não nos atinge tanto assim: é contra o outro, contra um eventual inimigo até. Ao torturá-los, o policial não é bem um violador de direitos humanos, mas um herdeiro do capataz que açoitava escravos com a devida aprovação social.
O silêncio diante da tortura colabora para perpetuá-la e reforça a divisão de uma sociedade na qual cidadania é privilégio de poucos. Essa conivência se equivale à que admite a permanência da fome, da miséria e do analfabetismo _mazelas que, como a tortura aos presos comuns, não nos atingem de forma direta e que acabaram incorporadas ao nosso cotidiano.