A censura pede passagem
Por Fernando Molica em 15 de dezembro de 2014 | Comentários (0)
Semana passada, anunciei, aqui no Facebook, que teria um conto publicado no projeto Rio: Passagens, organizado pelo Vinicius Jatobá e patrocinado pela Prefeitura do Rio. O site foi colocado hoje cedo no ar, mas meu conto – ‘Tamborim’ – não está lá. Fui excluído pelos organizadores por não concordar com a mutilação de meu texto. Eu e o Marcelo Moutinho, outro autor convidado, descobrimos, sábado à noite, que, sem nossa autorização, nossos contos haviam sofrido cortes e mudanças. A descoberta foi meio por acaso – consegui, por meio de terceiros, o link que levava ao site provisório, mantido em sigilo até para os autores. Pelo menos dois outros contos foram alterados; suspeito que o número seja ainda maior – naquela noite de sábado, Vinicius me pediu para não repassar o link para outros autores. No dia seguinte, domingo, o site provisório saiu do ar.
Entreguei a versão definitiva de ‘Tamborim’ ( disponibilizada hoje no meu site, localhost ) há quatro meses, no dia 13 de agosto. Desde então, não fui procurado para tratar de eventuais modificações ou adaptações. Ontem, contei 36 alterações: foram cortadas diversas palavras ou expressões; sete frases inteiras e trechos importantes de outras oito. No word, os cortes de frases atingem o equivalente a 13 linhas de texto. Os editores também decidiram abrir sete parágrafos em blocos de texto.
Ontem à tarde, um integrante da Arrastão de Ideias, empresa de Jatobá, atribuiu os cortes à necessidade de adequação dos textos, que, pelo projeto, deveriam ser adotados em escolas. Daí, a eliminação de quatro palavrões, pronunciados/pensados pelo único personagem do conto. Argumentei que não havia sido avisado dessa restrição, mas disse que, para não ser intransigente, aceitaria trocar aquelas palavras. Isso, apesar de rejeitar e repudiar qualquer censura. Como escritor, não discrimino palavras. Além disso, a densidade dos contos praticamente inviabiliza sua leitura por crianças. Os adolescentes que tivessem acesso aos textos não se chocariam com palavras que conhecem e costumam pronunciar – há sites bem mais atrativos para quem busca algum tipo de prazer não literário.
A frase seguinte está entre as cortadas: “Pelo peso, menos de quilo, não deveria ser outro daqueles livros parrudos, cheios de fotos, produzidos por empreiteiras que se valem de leis de incentivos fiscais.” Não há qualquer palavrão aqui, mas suspeito que os organizadores não gostaram da referência a leis de incentivo. Empreiteiras e incentivos fiscais devem ter sido considerados danosos à formação de nossos jovens. Houve cortes em brincadeiras com o sotaque paulistano, houve muitos cortes. Todos afetam e desrespeitam o trabalho do autor.
O tal integrante da Arrastão de Ideias (Evaristo, se não me engano) e Vitor Jatobá, produtor da empresa, alegaram, ontem, que não haveria tempo para fazer mudanças no site. Discordei, não se tratava de texto impresso, mas de publicação na internet. Esclareci que não exigiria, para hoje, a adaptação das traduções. Essa tarefa, assim como a regravação da leitura dos contos em português, poderia ser feita depois.
Como minha argumentação não foi aceita, fui excluído do projeto. O mesmo aconteceu com o Moutinho. Publiquei meu primeiro romance há 12 anos, escrevi seis livros, participei de três antologias de contos – e nunca havia passado por uma situação como essa. Até a editora alemã que publicou meu ‘Notícias do Mirandão’ me consultou sobre uma alteração em ordem de capítulos (e olha que seria difícil descobrir a mudança num texto em alemão).
O projeto conta com patrocínio oficial. A Secretaria Municipal de Cultura, entregou R$ 149 mil para a Arrastão de Ideias tocar o Rio: Passagens. A prefeitura não é responsável pelos cortes, acabou sendo envolvida num projeto que acabaria marcado pela censura e pelo desrespeito aos autores. Por falar em respeito: segundo o site Rio Transparente, o dinheiro do projeto foi repassado para a produtora em 30 de dezembro de 2013, há quase um ano. Até agora, a maioria dos autores não recebeu por seu trabalho (quantias pequenas, se não me engano, entre R$ 300 e R$ 500). Ontem, o Vitor me disse que, por conta de minha ausência do site, eu não receberia nada. É injusto, já que o trabalho foi feito e entregue no prazo. Mas deixa pra lá – espero, porém, que eles devolvam para a prefeitura, para os cofres públicos, o dinheiro que economizaram com os autores excluídos.