A cor do goleiro
Por Fernando Molica em 15 de abril de 2014 | Comentários (0)
Coluna ‘Estação Carioca’, O DIA, 03/3/14:
Jefferson, goleiro do Botafogo e candidato a titular da Seleção, tem sido obrigado a conviver com um fantasma. Volta e meia alguém ressalta que ele é negro como Barbosa, goleiro da Copa de 1950 que sofreu com a acusação de ter falhado no gol que deu o título ao Uruguai. Como a próxima Copa será no Brasil e terá partida final no Maracanã…
Em recente entrevista com Jefferson, o assunto rendeu três perguntas. Falou-se em estigma e desconfiança — tudo porque o goleiro é negro como Barbosa. A insistência no assunto faz lembrar teses que andaram em moda depois das derrotas de 1950 e 1954. Dizia-se então que negros não eram confiáveis, que tremiam diante de adversários fortes, que o melhor seria escalar jogadores brancos. Nas duas primeiras partidas da Copa de 1958, o único negro era Didi, que, além de jogar um bolão, tinha como reserva um outro negro — não havia branco disponível para aquela posição. Ao longo da Copa, o negro Pelé e o mulato Garrincha entraram no time e garantiram o primeiro campeonato do mundo para o Brasil.
Negros se tornaram presença constante na Seleção, mas não no gol: apenas na Copa de 2006 voltamos a ter um titular negro, Dida. O fato de ele, na época, jogar pelo Milan ajudou a quebrar preconceitos, mas, de vez em quando, o nome de Barbosa era associado ao seu. Chega a ser assustadora a naturalidade com que o assunto era e é abordado. Não se trata de avaliar detalhes como altura, envergadura, elasticidade. É feita uma absurda relação entre a cor da pele de um jogador e o seu desempenho em campo. A exemplo do que ocorreu na década de 1950, se atribui valor a uma tese fundada apenas num preconceito disfarçado de superstição. Dá pra imaginar o tamanho dos justos protestos que ocorreriam caso Barbosa fosse judeu e sua pretensa falha tivesse representado um veto à presença de outros judeus no gol da Seleção.
Ótimo goleiro, Jefferson, assim como todos os profissionais, deve ser analisado por suas qualidades e limitações (poderia repor melhor a bola, por exemplo). Insistir na lembrança de Barbosa representa uma ofensa a todos nós, ninguém está livre de ser vítima de algum preconceito. Ser negro não faz de Jefferson um goleiro melhor ou pior. É bem provável que ele tenha uma grande Copa, mas também poderá falhar — não por ser negro, mas porque é humano, assim como eu e você (ninguém diz que Julio Cesar falhou em 2010 porque é branco). Enxergar Jefferson pela memória de Barbosa é uma forma — ainda que involuntária — de perpetuar o racismo.