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A destruição dos nossos lugares


Por Fernando Molica em 19 de outubro de 2015 | Comentários (0)

O pessoal da Mórula Editorial teve o cuidado de incluir na última página do livro ‘O meu lugar’ uma espécie de provocação, uma foto de 1924 que mostra o desmonte do Morro do Castelo. O contraponto faz todo sentido. Depois de percorrer crônicas que tratam da relação carinhosa de 34 autores com bairros do Rio, o leitor é obrigado a refletir sobre um crime — o desmonte do morro onde, há 448 anos, a cidade foi refundada. A povoação original foi entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar.

Ao publicar a foto, os editores ressaltaram o absurdo desprezo com muitos de nossos marcos arquitetônicos, culturais e sentimentais. A desculpa do progresso, que algumas vezes encobre interesses nada confessáveis, fez com que o Rio atacasse um patrimônio fundamental para a formação de nossas próprias histórias.

É quase inacreditável que pouco tenha sobrado das construções da Avenida Central, hoje Rio Branco, inaugurada em 1905. Alguns dos principais arquitetos europeus e brasileiros foram convocados para projetar os prédios da avenida que simbolizava a reforma urbana implementada pelo prefeito Pereira Passos e que tentava, a golpes de picareta e com a expulsão dos mais pobres, fazer do Rio uma cidade mais moderna. O cuidado foi tanto que as fachadas dos edifícios foram escolhidas em concurso público. Quase tudo foi demolido, há casos de terrenos que abrigam a terceira geração de prédios. Sabe aquelas belas avenidas de Lisboa, Paris, Madri? Pois é, a Rio Branco era como uma delas.

Outro símbolo da desfaçatez e da cara de pau é o prédio da Cândido Mendes, um monstrengo espelhado de 40 andares plantado no fim dos anos 1970 no pátio do Convento do Carmo, construção do século 17. Uma construção viabilizada pela omissão e a cumplicidade do Iphan e da prefeitura. Depois da demolição da Perimetral, não custa sonhar com a derrubada deste atentado à cidade.

A lista é imensa, interminável. Inclui a transformação do Maracanã numa arena bonitinha e sem graça, a destruição do Palácio Monroe, o descaso com os subúrbios. E aqui não faço uma manifestação de saudosismo: ninguém vive sem lembranças, nossas memórias — individuais e coletivas — são essenciais para que possamos viver o presente e encarar o futuro. A eliminação do passado nos deixa órfãos, sem referências, mina o sentimento que nos liga a uma comunidade, rouba o nosso lugar, nos faz estrangeiros em nossa própria casa.

(Estação Carioca, O DIA, 21/9)

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