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A ditadura dos personagens


Por Fernando Molica em 20 de outubro de 2015 | Comentários (0)

Outro dia, o Sérgio Rodrigues publicou um post bem legal (http://todoprosa.com.br/o-personagem-so-faz-o-que-quer-ah…/…) em que discute a autonomia dos personagens numa obra de ficção. Até que ponto, afinal, o autor se vê escravo de suas criaturas?
Como ele, eu também achava que o tal poder dos personagens não passava de conversa fiada de escritores, algo que dava assunto para entrevistas, que estimulava a imaginação dos jornalistas e leitores, que acrescentava algum charme à tarefa de escrever. Isto, até começar a escrever meu primeiro romance, o ‘Notícias do Mirandão’, que seria lançado em 2002.

Durante o processo, descobri que – Caramba, é verdade! – autores acabam presos aos personagens, impedidos de obrigá-los a dar saltos mortais, duplos twists carpados. O desenrolar da trama nos obriga a respeitar características básicas dos caras, a evitar o que o Augusto Boal chamava de “mágica” – pela lógica do seu Teatro do Oprimido, espectadores podiam/deveriam interromper a peça para mudar a trama. Tudo era possível, desde que as intervenções respeitassem a lógica do texto. Quando havia uma proposta absurda (a chegada de ETs numa festa, por exemplo), Boal interrompia a cena e gritava : “Stop, c’est magique.”

Ao escrever o ‘Mirandão’ procurei tornar a história crível, verossímil, capaz de envolver o leitor, fazer com que ele não largasse o livro por conta de algo absurdo, algo que indicasse uma forçada de barra. Respeitei muito os personagens.
Logo depois, porém, resolvi transformar em livro reportagens que fizera para o Fantástico sobre o Antonio Expedito Carvalho Perera, um personagem espetacular, um ex-militante de extrema direita que vira advogado da VPR, hospeda Lamarca em casa, é preso, torturado, banido. Um sujeito que, na Europa, vira cúmplice do Carlos/Chacal – então o terrorista internacional número 1 – e, depois, representante do PCB na Itália.
Uma história absurda, cheia de reviravoltas, algo difícil de ser engolido numa ficção. Mas, como no filme do Welles, era tudo verdade.

E aí, como fica aquela história lá de cima? O cara teve uma vida inverossímil, mas tudo aquilo ocorrera. Aquilo tudo e muito mais, que, na época, não consegui apurar. Mergulhar na vida do Perera para escrever ‘O homem que morreu três vezes’ foi fundamental para este autor de ficção. Aprendi que o respeito à lógica do personagem não deve impedir o ficcionista de trabalhar com algo muito humano, a imprevisibilidade que existe em cada um de nós. Todos podemos surpreender.

Personagens são tinhosos, ao tentar mandar no escritor eles, muitas vezes, podem estar apenas tentando impedir que possamos conhecê-los melhor e, assim, expor suas mazelas. De vez em quando, vale dar um passa fora nesses atrevidos.

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