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A dor da gente não sai no jornal


Por Fernando Molica em 06 de abril de 2023 | Comentários (0)
Na madrugada de hoje, impactado pelo massacre em Blumenau, lembrei de um texto que publiquei em O DIA em 2011, logo depois da chacina na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo. Uma crônica sobre jornalistas e tragédias:
Nós, jornalistas, adoramos falar mal da nossa profissão. Reclamamos da tensão, da carga horária, dos salários, dos plantões, dos prazos. É quase impossível encontrar, num grupo de três ou quatro jornalistas, uns cinco ou seis que não estejam reclamando da vida e do trabalho (o nível de queixa chega a ultrapassar a lógica matemática). Talvez por cobrarmos tanto de tanta gente — governantes, policiais, empresários, lideranças sindicais — não conseguimos ficar sem nos queixarmos da vida que decidimos ter.
Mas a profissão tem suas vantagens. Desfrutamos de uma singular proximidade com os fatos. Bombeiros trabalham em incêndios; policiais, em locais de crimes; atores em teatros; jogadores de futebol em estádios. Nós trabalhamos em incêndios, locais de crimes, teatros, estádios, enterros, Sambódromo, Congresso Nacional, igrejas, sets de filmes pornográficos.
Essa característica acaba tornando nossa casca mais grossa. Na hora do trabalho, tendemos a não chorar em velórios, aprendemos a não comemorar gols de nossos times, a não xingar quem merece ser xingado. A necessidade de concluir nossas matérias acaba se impondo diante de alegrias e tragédias. Esta imposição nos dá um certo sentido de urgência e de utilidade.
Na quinta-feira passada, diante da chacina na Escola Tasso da Silveira, cada um de nós tinha algo a fazer. Correr para o jornal, ir para Realengo, telefonar para policiais, para governantes, para entidades da sociedade civil.
Na correria, demonstramos evidente insensibilidade. Entramos onde não deveríamos entrar, falamos alto, importunamos parentes de vítimas. A preocupação com a busca de uma informação exclusiva chega a ocupar, por alguns longos momentos, o lugar da tristeza. Vigiamos sites de concorrentes, vibramos quando os superamos, esticamos o horário do fechamento. É como, se, de alguma forma, tivéssemos necessidade de retardar o momento de dar como concluído o nosso trabalho.
Talvez porque, na hora em que o jornal começa a rodar, fiquemos novamente desprotegidos, expostos à barbárie como qualquer outro cidadão. Reunidos já na madrugada de sexta, sentados em torno de uma mesa de bar, sabíamos que não seria fácil dormir: havíamos acabado de perder nossa armadura profissional, o peso da tragédia se impunha sobre todos. Ter algo a fazer é essencial na hora em que tudo parece perder o sentido. Naquele dia terrível, fazer jornal nos ajudou a não sucumbir.
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