“A Gazeta”
Por Fernando Molica em 19 de julho de 2008 | Comentários (0)
Segue resenha de “O ponto da partida” publicada, hoje, 19 de julho, no jornal “A Gazeta”, de Vitória.
Um homem em busca de uma história(Tiago Zanoli – A Gazeta)
Pode-se ter a idéia de que, para um repórter policial, a violência é uma rotina vista com indiferença, como se a cobertura diária dos crimes tivesse um efeito anestésico. Mas até jornalistas experientes e velhos de guerra podem ter dificuldade para suportar o horror da brutalidade que cerca ruas e esquinas dos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro.
Em meio ao belo cenário carioca, Ricardo Menezes, um repórter de meia-idade, busca no passado uma válvula de escape que lhe dê forças para lidar com mais um assassinato. Saudosista, ele se agarra aos versos de Nelson Cavaquinho e às lembranças de um jornalismo “romântico” que não viveu, com seus personagens folclóricos, a exemplo de um certo João Carniça – que não sabia escrever, mas “apurava pacas”.
Uma daquelas velhas histórias curiosas e engraçadas, que o faça rir, é tudo o que deseja Ricardo, o protagonista de “O Ponto da Partida”. Lançado recentemente pela editora Record, é o terceiro romance do jornalista e escritor Fernando Molica, autor de “Notícias do Mirandão” (2002), “O Homem que Morreu Três Vezes” (2003) e “Bandeira Negra, Amor” (2005).
Por meio de uma narrativa não-linear, intercalando primeira e terceira pessoas, Molica apresenta um personagem em crise de meia-idade, dividido e preso ao passado, incapaz de compreender e conviver com a nova geração – aqui representada por seus próprios filhos e pelos jovens jornalistas que enchem as redações de hoje.
Passado
A estrutura se alterna em três tempos: o momento presente, em que Ricardo está de plantão diante de um cadáver na praia do Arpoador; um passado recente, com cenas ocorridas naquele mesmo dia; e outro mais antigo, que revê toda a trajetória pessoal e profissional do protagonista.
Enquanto aguarda, durante toda uma madrugada, que a polícia recolha o corpo esquartejado de uma mulher, Ricardo revira os arquivos de sua memória, em busca de mais uma história do saudoso João Carniça. Desejando encontrar conforto, acaba tendo de enfrentar seus próprios demônios, como as lembranças do fracasso como pai de família e do desprezo dos filhos.
O homicídio, que serve de mote para o livro e foi tirado de uma situação real vivida pelo autor, é apenas pano de fundo para a história. Em vez de se concentrar na solução do crime, como nos romances policiais, Fernando Molica fecha o foco no personagem – sua subjetividade, seus desejos, suas angústias.
O protagonista, boêmio confesso, interfere na história de tempo em tempo. A narrativa em primeira pessoa assume o tom coloquial de uma conversa de botequim. Ricardo despeja seu desabafo, recheado de nostalgia e desencanto, profissional e pessoal. O tom de sua voz, no entanto, em vez de melancolia, revela um senso de humor cáustico.
Divorciado de Adélia, uma advogada bem-sucedida e corrupta, ele manifesta seu ódio pela ex-mulher e não poupa críticas aos próprios filhos: a fútil e consumista Caroline e Carlos, que faz questão de ser o oposto de tudo aquilo que o pai representa. Apesar disso, Ricardo reconhece que não é totalmente inocente pelo casamento frustrado e o abismo afetivo que o separa dos filhos.
Ao final, com o dia já clareando, o corpo abandonado na praia é recolhido, e Fernando reserva uma virada surpreendente para o seu desiludido protagonista. De duas outras derrotas pessoais, surge a perspectiva de uma nova vida e um recomeço. Caminhando pelas ruas do Rio, Ricardo alimenta a esperança de que “o sol há de brilhar mais uma vez”.
Confira
Fernando Molica
O Ponto da Partida
Record 192 páginas
Quanto: R$ 32, em média
Trecho do livro
Pode parecer engraçado, mas, naquela época, repórter não precisava escrever. Sério. O João Carniça era um que não conseguia juntar duas palavras. Mas apurava pacas, era complicado correr com ele, muito garoto novo penou, tomou furo do João. Ele, coitado, nem tentava escrever. Só que começou a chegar nas redações uma molecada de faculdade, uns cabeludos de livro debaixo do braço, de bolsa de couro, e, principalmente, umas menininhas de calças jeans, de camiseta, sem sutiã, umas gracinhas.
Todos sabiam escrever, iam pra máquina e disparavam, igual a metralhadora. E o João ficava cabreiro, meio envergonhado com aquela história de chegar da rua e ir direto até a mesa do seu redator, é, havia um redator que cuidava dele, um personal writer: não era todo mundo que conseguia transformar em matéria a apuração dele, aquelas anotações complicadas, rabiscadas num bloco seboso, meio nojento. Mas o João chegava, ia pra frente do redator e começava a contar a história. Engraçadíssimo, tinha gente que parava de trabalhar só pra ver. O João quase se perfilava diante do cara, punha os óculos de leitura, dava uma lambida no indicador, virava uma página do bloco e começava a recitar.
Ele tinha uma voz forte, assim meio de barítono; não ditava, declamava a ocorrência. O começo era quase sempre o mesmo: “Uma viatura comandada pelo sargento Fulano de Tal, da Polícia Militar…” Ou então: “Como decorrência” – ele adorava o “como decorrência”- “das investigações conduzidas pelo delegado Melquíades Peixoto, do 25º Distrito, a polícia logrou êxito ao prender o marginal Carlinhos do Cabuçu, que desde ontem deixou de se constituir em um perigo para a sociedade.” O tal do delegado Peixoto era compadre do João, estava sempre naqueles ditados que ele fazia para o redator.
O sujeito ficava ali, ouvindo a lengalenga, e ia transformando aquilo em matéria, em texto publicável. Mas o João foi se chateando, se sentindo meio humilhado, era um dos poucos que não escreviam matéria. Ficava assim meio triste quando via aquelas mocinhas bonitas, novinhas, redigindo o próprio texto. E pediu pra começar a escrever. Conversou com o redator, tomou algumas lições, faça isso, aquilo, evite os adjetivos, não precisa dar sempre o nome do delegado, do sargento, do soldado, cuidado com as acusações. E, claro, não repita palavras, isso empobrece o texto, cansa o leitor. O João ouvia, anotava, arrumava aquelas coisas todas na cabeça. Ficou impressionado com aquela história de não repetir palavras: “Ah, é assim, é?” E num belo dia foi fazer uma matéria sobre o assassinato de um pescador, o cara, sei lá, morava em Niterói, parece que tinha sido esfaqueado pela mulher, um negócio desses. Tinha bebido demais, o de sempre.
Como diria o João, consta que – ele também gostava muito do “consta que” – a dona Maria, a mulher do pescador, estava meio puta naquele dia, cansada de trabalhar, de cuidar das crianças, de aturar ordem de marido bêbado. O sujeito chegou em casa tarde, trocando perna, falando enrolado, com aquela penca de peixe fedorento nas mãos, mandando a mulher ir pra cozinha cuidar do jantar. E, ainda por cima, ameaçando encher a coitada de porrada. Foi o limite. Baixou um caboclo nela, que perdeu a paciência, pegou um facão e, vupt!, abriu um rasgo deste tamanho na barriga do velho homem do mar. O João Carniça foi lá, enrolou os policiais, conseguiu conversar com a mulher, falou com os filhos, apurou tudo, todos os detalhes. Chegou na redação orgulhoso, nariz meio empinado.
Aproveitou que era um plantão, tinha menos gente trabalhando, o seu redator estava de folga. Resolveu escrever o texto. E ia pensando, nada de enfileirar nomes de policiais, nada de adjetivos e, principalmente, nada de repetir palavras. Sentou-se diante da máquina e taquitiquicati, pá-pápá, tuc-tuc-tuc, pow, pow. Saiu catando milho, dando porrada na Remington. O cara chegava a suar, coitado, de tão nervoso. Sabia que a redação estava de olho nele, todo mundo dava um jeito de levantar, ir no café, passar por ali pra ver como o João se virava naquele trabalho de parto. Depois de quase duas horas, ele tirou a última lauda da máquina e se levantou. A lata do lixo estava cheia de laudas amassadas, rasgadas. Mas ele, coitado, sorria orgulhoso, aquele sorrisão bonito, que mostrava o canino de ouro. Foi então ao editor, acho que era o Magalhães, e entregou as duas laudas, dobradinhas. “Taí, chefe, é só dar uma lida e mandar pra oficina.” E o Magalhães, tenho quase certeza que era ele, começou a ler. O lide, o início da matéria, estava até correto, o problema foi na hora em que ele descreveu o momento do crime, a porra da preocupação de não repetir as palavras. Ficou mais ou menos assim: “O pescador entrou na cozinha com os peixes nas mãos e disse para a esposa: “Mulher, frite os mesmos!”
Pra não repetir a palavra peixes, o João Carniça disse que o pescador tinha mandado a mulher fritar “os mesmos”! O Magalhães ficou vermelho, começou a rir, tentava segurar o riso e não conseguia, não queria humilhar o João, todo mundo gostava muito dele, mas não deu, o sujeito foi ficando sufocado de tanto prender o riso. “Frite os mesmos!” A lauda circulou de mão em mão, bateu todos os recordes internos de leitura. Claro que aquele absurdo não foi publicado, um redator deu um jeito. Mas a história ficou, né? Pior é que, no dia seguinte, o dono do boteco que fica ali embaixo do jornal colocou no cardápio do almoço, naquele quadro-negro, bem na entrada do bar: “Prato do dia: Mesmos fritos com feijão, arroz e salada.” Todo mundo comeu peixe naquele dia, uma sacanagem. Neguinho ria e comia, ria e comia. Coitado do João.