A hinterlândia de cada um de nós
Por Fernando Molica em 11 de maio de 2012 | Comentários (2)
Coluna Estação Carioca, jornal O DIA, 09/05:
Sabe aquele Rio litorâneo, de sal-sol-sul, de barquinhos que vão, de tardinhas que caem? É lindo, sem dúvida. Mas este Rio, volta e meia citado como o único que nos traduz, é apenas um pedaço da cidade. Uma parte incapaz de traduzir todos os nossos encantos e contradições. O Rio também é calçada revestida de caquinhos de ladrilho, churrasquinho na rua, pipa no céu e leite de onça. Rio é coreto de Carnaval, Tricolor Suburbano, Fera da Penha, Norte Shopping, doces no Dia de Cosme e Damião, Ponto Chic, bola de gude e bolo salgado.
Carioca de Irajá, o compositor e escritor Nei Lopes pôs no papel histórias, monumentos, personagens e tradições de um subúrbio que vinha perdendo a memória. É só reparar: há pilhas de livros que tratam de bairros da Zona Sul, quase não existe nada sobre Méier, Piedade, Cascadura, Realengo ou Bangu. Com seu recém-lançado ‘Dicionário da hinterlândia carioca’, Nei recoloca nos trilhos o trem de nossa história. No livro, Zepelim não é um antigo bar de Ipanema, mas o dirigível que, na década de 30 do século passado, ligava o Rio à Alemanha e descansava num hangar de Santa Cruz; o Piraquê do Dicionário não tem a ver com o clube da Lagoa, trata-se do apelido de um ex-mestre-sala dos ranchos Flor do Abacate, União da Aliança e Mimosas Cravins.
Das páginas surgem os clubes Renascença, River, Garnier e Cassino Bangu; emergem personagens como Lourenço Madureira, Tia Vicentina, Joel Santana, Rouxinol Suburbano e o violonista Meira — cada um deles recebeu do autor uma pequena e merecida estátua de papel e tinta. O livro reza nas igrejas da Penha, de São Jorge e do Divino Salvador; ora no Templo da Assembleia de Deus na Rua Carolina Machado; bate cabeça no Terreiro de Seu Sete da Lira e no Candomblé do Bate-Folha. Ecumêmicos, seus verbetes reúnem pedaços dispersos da cidade, convocam para uma grande festa de reencontro. O trabalho de Nei Lopes ajuda a lembrar que a cidade não pode ser feita de exclusões e de condomínios fechados; ressalta que mitos, monumentos e personagens não são menos nobres só por terem nascido longe do mar. Num momento em que o Rio tenta fazer cicatrizar antigas feridas, é fundamental mostrar que cada esquina tem sua história, seu motivo de orgulho. O Dicionário faz com que nossa hinterlândia — palavra que define uma região afastada — fique ainda mais perto e gera nos leitores a desconfiança de que no subúrbio é que mora o nosso centro.
Abraços, meu caro. E viva a torcida alvinegra de Piedade. Eu morei na Bernardino de Campos (o prédio também tinha entrada pela Belmira) e na José Mariano. Minha mãe morou na Lima Barreto. abs.
Fernando MolicaCaro Molica, que beleza esse texto: fez lembrar realmente a minha infância em Piedade (pois é, e olha que também sou botafoguense!), os dias de festa junina, a esquina da Leopoldina e João Pinheiro enfeitada pra Copa do Mundo, o River, a "Lima Barreto" em que também morei, a Divino Salvador, o 689 que eu pegava para ir à escola etc., além da paisagem mais propriamente "humana", é claro, cheia de figuras imbatíveis, hoje apenas vivas no álbum da memória... Valeu! Aproveito pra deixar registrado também o link para uma homenagem que fiz ao nosso grande Nei Lopes, coisa singela, mas que expressa, afinal, outra afinidade que compartilhamos... Abração, Pablo
Pablo