A Olympia e suas marcas
Por Fernando Molica em 27 de julho de 2015 | Comentários (0)
Coluna Estação Carioca, O DIA, 27/7:
No ótimo ‘Woody Allen — Um documentário’, o cineasta norte-americano conta que, desde sempre, escreve seus textos numa máquina de escrever Olympia portátil — máquina quase igual à minha (a dele é marrom; a minha, verde). Isto foi o estímulo que faltava para a até então sempre adiada busca de um técnico capaz de recuperar o instrumento que tanto usei para escrever trabalhos de escola e um ou outro esboço de conto.
Fabricada na Alemanha, a Olympia verde foi parar em Viçosa, Minas Gerais, na casa dos tios Divino e Inês. No início dos anos 1960, a máquina foi migrada para o Rio, teve como destino o escritório de contabilidade do meu pai, em Cascadura, era parte do pagamento de um piano comprado para a prima Valéria. É desta época a foto em que eu, com uns 2 anos de idade, sentado no sofá de casa, coloco indicadores sobre o teclado da Olympia. Foi quando a toquei pela primeira vez.
Na década seguinte, a máquina trocava Cascadura pela casa de Piedade e, depois, pelo apartamento do Méier, sempre que eu precisava datilografar algum trabalho. De tanto ir, acabou ficando; é diante dela que — registra uma foto de 1984 — estou sentado, vestido com camiseta que exigia eleições diretas para presidente. A chegada do computador fez com que a Olympia perdesse a utilidade, mas não me desfiz dela, que me seguiria por muitas casas. Numa dessas mudanças deve ter levado um tombo que a deixou travada. A falta de uso gerou o acúmulo de poeira e o adiamento de sua ida para a oficina, o que só ocorreria na segunda passada. Nesta semana, vou levá-la de volta pra casa.
Há uns anos, numa Flip, o escritor argentino César Aira frisou que, por conta dos sistemas computadorizados, não era mais possível entender o funcionamento de uma máquina (carro, geladeira, o próprio computador) a partir de sua desmontagem. Qualquer mecânico seria capaz de desmontar um Fusca e entender como seu motor operava. Hoje, máquinas são cheias de segredos, de circuitos, de conexões — se desmontar a geladeira de casa encontrarei uma placa tão enigmática quanto a que recheia e dá vida ao computador em que escrevo este texto e que produz letras virtuais na tela.
Não trocarei o computador pela Olympia, mas admito uma certa saudade da marca no papel que traduzia o peso do golpe desferido em cada tecla, dos caracteres que não podiam ser apagados sem deixar rastros. Letras que somem das telas sem gerar vestígios ajudam a traduzir um mundo em que o escrito, o dito e o prometido já não valem tanto assim.