A tesoura da minha editora alemã
Por Fernando Molica em 11 de junho de 2016 | Comentários (0)
Trago pra cá, com alguns acréscimos, o comentário que fiz num post do Carlos Andreazza, meu editor na Record, sobre a reportagem do Guilherme Freitas sobre o Gordon Lish, um editor que não vacilava em cortar e reescrever textos dos autores que publicava.
A discussão é muito boa, a interferência num texto de ficção é sempre delicada (o próprio Lish, diz a reportagem, chorou quando seu editor apontou problemas em seu primeiro romance). Quando o ‘Notícias do Mirandão’ estava para sair na Alemanha, os editores, Hanna Mittelstädt e Lutz Schulenburg (da Nautilus), vieram ao Rio, tratei de recepcioná-los. Num restaurante da Feira de São Cristóvão, a Hanna sacou da bolsa um print do livro e, entre cervejas e pedaços de carne de sol, alegou que seria melhor inverter a ordem de alguns capítulos iniciais.
Não sugeriu qualquer mudança no texto, apenas na ordem. Olhei, pensei, e concordei. Acabei propondo uma nova combinação de capítulos, uma sequência que considero melhor que a original. Uns dois ou três anos depois, a Hanna, após ter assinado o contrato de publicação do ‘Bandeira negra, amor’, queria suprimir alguns (mais do que alguns) trechos do livro.
Não gostei muito da ideia, mas topei analisar o pedido. O problema é que as alterações mudariam a pegada do livro, que seria transformado num romance policial. Nada contra os policiais, muito pelo contrário, mas não era essa a proposta, achei que, ao fazer isso, eu apresentaria ao leitor um livro meio falso, diferente daquele que havia sido publicado no Brasil – eu havia resolvido o crime tratado no romance uns quatro ou cinco capítulos antes do fim para reforçar que não se tratava de uma narrativa policial.
Bem, recusei a proposta, a Hanna desistiu do livro – fiquei triste, mas nem um pouco irritado com a editora, que cumprira seu papel – gostei muito de poder conversar sobre o que escrevera. Anos depois, o ‘Bandeira’ sairia em e-book por uma outra editora na Alemanha e, agora, deverá ser publicado em papel. (O engraçado é que fui rever agora a capa da edição do ‘Bandeira’ alemão – apesar dos meus cuidados, o livro acabou sendo classificado como ”kriminalroman”, ou seja, romance policial.)