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As angústias narrativas do feto de McEwan


Por Fernando Molica em 23 de novembro de 2016 | Comentários (0)

No seu ótimo romance ‘Enclausurado’, o camisa 10 Ian McEwan faz mais do que conferir uma improvável verossimilhança a uma história contada por um feto na barriga da mãe. O livro é também metáfora do processo de uma gestação literária: o inglês brinca com a lógica do narrador-deus, onipresente, onipotente e onisciente, algo questionado por alguns escritores.

Narradores improváveis não chegam a ser novidade. No fim do século 19, Machado de Assis deu voz – e que voz! – a um defunto, o sujeito que dedica o livro ao primeiro verme que degustara suas carnes. Mas Brás Cubas trata de memórias, de situações já vividas. O quase bebê de McEwan é, como o repórter Esso, testemunha de uma história, de fatos em tempo real que ocorrem diante de sua casca de noz (o título original do livro é ‘Nutshell’).

Ao se responsabilizar pela narrativa, o feto se depara com problemas conhecidos pelos ficcionistas. Em tese, ele é o dono da bola, sabe de tudo, poderia mudar os rumos da trama, redigir a versão preferida de uma história ‘real’, que afirma ter vivenciado – ele nos contou uma possibilidade dos fatos, poderia, como romancista, optar por outra.

Mas, isolado em seu escritório apertado e desconfortável – o ventre materno -, o colega acaba se dando conta de como é relativo o poder de quem inventa e/ou relata uma história. Apesar de saber de tudo o que acontece, de poder mexer na narrativa, de criar alguns incidentes (não abre mão de dar uns chutes voluntários na barriga da mãe), ele não tem o domínio absoluto de seus personagens.

Antes de sentar para escrever meu primeiro romance, duvidava de escritores que se diziam reféns de seus personagens, que, em palestras e entrevistas, contavam que se viram obrigados a seguir os caminhos determinados por suas criaturas. Sempre achei que isso não passava de uma tentativa de conferir mistério e valor ao ato de escrever.

Há tempos que admito meu erro de julgamento. Os poderes do autor diminuem muito depois que ele escala seu time e o coloca pra jogar – não dá pra inventar um pênalti quando a jogada se passa no meio do campo. Em apresentações do Teatro do Oprimido, em que incentivava a intervenção do público nas peças, Augusto Boal reprimia soluções mágicas, que considerava desconectadas do enredo. Ao perceber este tipo de tentativa, ele gritava ‘Stop, c’est magique’ – a ficção não deve abrir mão de alguma lógica.
Lembro também de uma novela em que o personagem do Mário Lago escrevia e publicava livros com novos finais para antigos clássicos – nada de mortes trágicas de protagonistas, de desfechos tristes (se não me engano, Capitu e Betinho terminavam felizes para sempre). As recriações acabavam encalhadas, ninguém comprava os livros, leitores desprezam falsidades no reino da invenção.

Confinado à barriga da mãe, o feto fica sabendo de tudo o que está sendo dito e tramado, quer dar um jeito de mudar a sequência da história, pensa em soluções mágicas e até em abandonar de maneira trágica sua participação naquele enredo, como um autor que apagasse tudo o que havia escrito ou queimasse a única versão de seu manuscrito.

Revoltado com o que se passa, com o que escuta, o feto se revolta, mas, bom escritor que é, acaba admitindo suas limitações, percebe a impossibilidade de produzir um novo fim para aquela trama. Dá para mexer aqui e ali, criar algumas armadilhas para os personagens, mas não é viável mudar o que estava escrito antes mesmo de ser digitado ou impresso. Ele descobre, como confessa na penúltima frase do romance, que o significado chega depois da história.

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