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Cães e tiros*


Por Fernando Molica em 21 de junho de 2023 | Comentários (0)

Livros são engraçados; como animais domésticos, muitas vezes se fingem de mortos, ficam escondidos, arrumam um lugar num canto qualquer ou mesmo na estante. Mas, de vez em quando, eles despertam, saem correndo por nossas cabeças, nos chamam para brincar.

É o que aconteceu com dois livros que li recentemente, ‘O cachorro e o lobo’, de Antônio Torres, e ‘Faroestes’, de Marçal Aquino. O primeiro faz parte de uma trilogia completada por ‘Essa terra’ e ‘Pelo fundo da agulha’, todos romances que tratam de um tema caro ao autor, que remete à sua história, a migração nordestina para o Sudeste, para São Paulo.

Tratam de idas e vindas, sonhos, medos, conquistas, fracassos, decepção, esperança. Falam de outra migração, das mudanças dentro de cada um dos personagens que já não sabem de onde são, se de lá ou de cá, ou se vivem num lugar inexistente, não é nem a cidade de origem nem São Paulo, um lugar que só existe neles.

Os três livros foram reunidos pela Editora Record num só volume, ‘Trilogia Brasil’. Em ‘O cachorro e o lobo’ acompanhamos o retorno de Totonhim à cidade natal, Junco, no interior da Bahia. Isso, 20 anos depois de sua partida marcada pelo suicídio do irmão, Nelo, que fracassara em sua tentativa de ficar rico na cidade grande e que teve sua desventura narrada em ‘Essa terra’.

O que ocorre no primeiro livro da trilogia deixa o leitor de ‘O cachorro e o lobo’ atento para uma possível nova tragédia. Não vou antecipar o fim do romance, mas dá pra dizer que, nele, a pegada é outra. Em sua breve passagem pelo Junco, Totonhim não consegue evitar a memória do irmão, mas, diferentemente de Nelo, ele não viaja para exibir fortuna ou pobreza, não se cobra.

Totonhim quer tentar refazer laços, reencontrar o pai, a mãe, a ex-namorada, a praça, os bêbados, as plantações, sabe que a cidade que deixara não existia mais. O romance não nos apresenta um acerto de contas, mas uma espécie de reciclagem de afetos e medos, entre o afago de um cachorro e o uivo de um lobo distante que já não gera pavor.

Lançado originalmente em 2001, o livro de contos ‘Faroestes’ ganhou nova edição, da Companhia das Letras. Aquino trata da periferia de São Paulo, do abandono, da crueza, da violência. Aborda personagens que podem ter sido vizinhos de Nelo e Totonhim, são bandidos, policiais, vítimas de violência, jovens.

O autor não busca tratar de origens da violência, o crime é visto como algo banal, do cotidiano de grandes cidades brasileiras. O que importa é contar histórias, algumas que se mostram corriqueiras, outras trágicas e aquelas que chegam a ser engraçadas, como a do cara que descobre que o marido de sua amante é um policial.

Os bandidos do livro, por mais cruéis que sejam, não são aqueles celebrizados por suas atuações em comandos, em grandes crimes. Têm vidas erráticas como a de qualquer outro profissional comum, vacilam, protagonizam desastres. O que Aquino faz – com uma linguagem que lembra as tacadas dos jogadores de bilhar mostrados na capa – é nos lembrar do absurdo de uma sociedade que banaliza o desumado, em que um homicídio é planejado ou executado com a tranquilidade de quem, numa dessas madrugada frias, pede um café com leite e pão e manteiga numa padaria periférica.

 

*Artigo publicado no Correio da Manhã, 19/6/23.

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