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Carta do Bruno Quintella, filho do Tim Lopes


Por Fernando Molica em 05 de junho de 2008 | Comentários (5)

Acabo de ler esta belíssima, emocionante e corajosa carta que o Bruno Quintella, filho do amigo Tim Lopes, enviou para os colegas de “O Dia” que foram vítimas de um novo capítulo da sucessão de barbaridades e absurdos que assola nossa cidade. Fui amigo do Tim por muito tempo, mas só conheci o Bruno há alguns poucos anos, depois que nos tornamos colegas de redação. Tenho o maior orgulho de ser seu amigo, de ter trabalhado com ele; assim como tenho orgulho de ter sido amigo e de ter trabalhado com o Tim. Tim que, mais uma vez, ficaria orgulhoso do filho ao ler esta carta. Nada melhor resume o sentimento de todos, principalmente dos jornalistas, do que este trecho escrito pelo Bruno:

“Naquela edição de domingo, dia 1º, todos nós fomos ao Batan. Todos nós apanhamos, fomos eletrocutados, desmaiamos e fomos largados à beira da Avenida Brasil.”

Aí vai o texto da carta. Abração, Bruno.

“Meus queridos colegas,

Ainda estou sob estado de choque pelo o que aconteceu. Não bastasse a infeliz coincidência, pela proximidade do aniversário de morte de meu pai, fui surpreendido pela má notícia quando chegava para trabalhar no plantão da madrugada, há quatro dias. A edição de domingo do jornal O Dia, lida ainda no sábado, anunciava em letras garrafais brancas e com fundo negro a covardia a qual vocês foram submetidos na Favela do Batan, em Realengo. Mais um atentado contra a imprensa e principalmente, contra o estado democrático de direito. Uma afronta não só ao jornalismo, mas ao ser humano e à dignidade. Um atentado contra nós. Uma tentativa de nos intimidar, jornalistas e cidadãos, mas, ao que parece, essa prática não é mais exclusiva dos traficantes de drogas. Não se trata mais de poder paralelo, nem poderes. Como na matemática, ironicamente sem lógica, no entanto, são projeções paralelas de um poder falido e moribundo. A milícia funciona, no sentido antropológico da questão, como anti-tráfico de drogas. É uma atividade que cresceu muito em pouco tempo, tangenciando os limites físicos e latifundiários da indústria do narcotráfico carioca, supostamente para sufocá-lo. Ora, como pode existir a milícia sem o tráfico? Como podem existir essas duas modalidades de crime, sem a ausência do Estado?

O curioso é que, passados vinte dias desde a violência sofrida pela equipe, muitos questionam a conduta do jornal e dos profissionais envolvidos, do risco, do perigo. Dai a César o que é de César – e a Deus o que é de Deus. Não podemos esquecer – e não vamos – meus colegas, da barbárie, da covardia, da violência física, dos choques, da humilhação e do trauma. Nisso, não há o que discutir. Não há o que opinar, não há conduta certa: sofrer na pele, só quem sofreu. A morte de Tim Lopes foi um divisor de águas nas questões de coberturas jornalísticas de violência e segurança pública. Fazer reportagens sobre esses temas, principalmente quando se trata de uma intimidação ao trabalho da imprensa, com tortura e, até a morte, é nosso papel, nosso ofício, dentro ou fora da redação. Porém, está na hora da mobilização. Como lembrou bem o colega Jorge Antônio Barros, nós jornalistas, também precisamos sair do casulo ‘para ver melhor a dor que não sai no jornal’. Precisamos convocar para essa luta todos os cidadãos que já foram vítimas de violência, seja ela de qualquer tipo.

Não sei onde vocês estão, mas sei que estão bem, em local seguro, e me solidarizo ao que vocês passaram, porque imagino como estejam suas famílias, já estive daquele lado, na turma dos terços, das mãos dadas, do rosto molhado, das noites sem dormir. Naquela edição de domingo, dia 1º, todos nós fomos ao Batan. Todos nós apanhamos, fomos eletrocutados, desmaiamos e fomos largados à beira da Avenida Brasil. Existe exame psicológico de corpo de delito? Cicatrizam-se as chagas de um trauma? Não, vocês não são heróis. Não, não acabou o sofrimento. Vocês são corajosos, arriscaram a vida para mostrar à sociedade o drama de quem vive sob poder da milícia. Só não esqueça que tem muita gente aqui do seu lado, mesmo vocês estando longe. Sou jornalista, filho de jornalista, sobrinho de jornalista, afilhado de jornalista e escrevo a vocês como homem, como amigo e, claro, como profissional. No entanto, para nós, não é possível desvencilhar essa trinca, é?

Meu pai morreu para contar a história. Vocês também foram vítimas da violência, a do outro lado, a dos maus policiais. Ainda me pergunto se a maior afronta foi o espancamento, o cala-boca, a intimidação, a covardia, ou se foi deixá-los vivos, mesmo depois de se identificarem como policiais. A impressão que fica é quem morre vive menos, mas, quem vive morre mais. Conviver com o trauma, a pena para quem viveu o pesadelo; a certeza da impunidade, a motivação para a continuidade da atividade da milícia.

Elias Maluco, 01, Largo do Chuveirão, Favela da Grota, tribunal do tráfico, tribunal da milícia, poder paralelo, afronta, tortura, barbárie, intimidação, estado democrático de direito, resposta, cobrança, mobilização, paz, solidariedade, conduta, profissão, risco, morte e vida. São palavras do dicionário da violência do Rio. E nós, jornalistas e cidadãos, somos analfabetos que sabem escrever.”

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Comentários
31 de maio de 2009

Até quando abusarão os homens públicos de nossa paciência? Poderia ter alguma palavra mais que significasse nossa INDIGNAÇÃO? Com a plavra algum homem sério deste país (será que ainda existe?)

Vitor
06 de junho de 2008

E ninguém cala essa nossa dor, Marluci... Beijos.

Fernando Molica
06 de junho de 2008

Molica, o tráfico roubou para sempre minha alegria por poder sentar ao lado do Tim em São Januário ou no Maracanã para torcer pelo Vasco. A milícia afastou-me agora também de queridos colegas de profissão dos quais sinto saudade, na redação ou no samba. Sim, a tortura é extensiva a nós. Essa dor não tem fim. Beijos no Bruno e nos amigos refugiados.

Marluci Martins
06 de junho de 2008

Salve, Molica! A carta do nosso Bruno, do meu amigo querido (mesmo!) é certeira ao atacar, no fundo, a essência da questão: o fato em si de existirem áreas em que não se pode ir, não se pode andar, tem-se que pedir permissão etc etc, independentemente de se tratar ou não de jornalistas. Isso somado ao drama que ele viveu e conhece e que é algo terrível, inominável, faz da carta uma pancada no estômago de todos nós. A solidariedade dele é sincera, comovente, pura - e o texto, muito bem escrito. Mas quero registrar - e disse isso a ele pelo telefone, como direi pessoalmente amanhã, quando tomaremos mais um chope, se Deus quiser - que o mundo real não é o mundo ideal onde a gente gostaria de estar. E não temos o direito de não entender isso. Por isso, temos que saber que, hoje em dia, há um ponto que não pode ser deixado de lado - como, infelizmente, faz o Sindicato, as grandes empresas jornalísticas, o próprio Dia e muitos colegas da imprensa, e isso não tem nada a ver com o sentimento do Bruno, acho mesmo que não cabia a ele, no tom que ele deu, discutir isso -: este lado, este ponto é: pra que ir até lá, disfarçado não sei de quê, morar lá? Pra quê? Valeria a tortura, ou a morte, em nome de quê? Vale a vida? Ou seja: o foco da discussão tem que se voltar, também, para o porquê de o jornal - qualquer um - ainda mandar (ou autorizar, ou achar natural) repórteres (pessoas, não esqueçamos!) para morrer onde quer que seja. É preciso? Desculpe-me a colega que postou antes, mas, a troco de quê? "Salvar" as pessoas que ali vivem? Denunciar a opressão, os desmandos? Ou vender jornal? Ou ganhar prêmios? Depois do que aconteceu com o Tim, será que não aprendemos nada? Ganhar prêmios? Nada? O quê? Pra quê? Um grande abraço.

Eduardo Carvalho
05 de junho de 2008

Estou a um ano e meio de poder ser chamada de jornalista, mas o infortúnio ocorrido com os repórteres de O Dia desperta tamanha revolta que me faz sentir como macaca velha de redação. O ramo chamado “investigativo”, no meu entendimento, é a expressão mais genuína da responsabilidade social inerente à profissão – e nesse ponto reside minha infinda admiração por quem o pratica. Nesse ponto reside, também, minha grande motivação por, quem sabe, estar fazendo o mesmo daqui a alguns anos. É duro sentir tão covarde ameaça ao exercício de minha futura profissão. É duro assistir, através da atuação das milícias, a total desapropriação dos conceitos de polícia e bandido. Aqui do lado de casa. Não sei nem se tenho o direito, mas ouso dizer que, como Bruno Quintella, também apanhei das milícias na favela do Batan. Tapa na cara. Choque. De toda essa dor eu compartilho. De início desestimulantes, a verdade é que tragédias como a de Tim Lopes e da equipe d’O Dia fomentam em mim vontade ainda maior de combater essas atrocidades.

Mariana Bradford