Cheia de graça*
Por Fernando Molica em 12 de junho de 2023 | Comentários (0)
A morte da cantora Astrud Gilberto fez com que, depois de muito tempo, eu voltasse a ouvir o disco que virou referência em sua carreira, o ‘Getz/Gilberto’, gravado em 1963 e lançado no ano seguinte. Como Ruy Castro, meu vizinho aqui nas páginas do Correio, escreveu em abril passado, o disco parece que foi feito ontem. É belíssimo, moderno e ousado.
Para a gravação, foram reunidos num estúdio em Nova York o saxofonista americano Stan Getz os brasileiros João Gilberto, Tom Jobim, Astrud e o baterista Milton Banana — seria a estreia da cantora em disco. Casada com João Gilberto, a baiana sequer tinha uma carreira profissional, cantara com o marido apenas uma vez, num show no Rio. Transformada em compacto simples — um single, na versão de hoje — sua versão em inglês de ‘Garota de Ipanema’ lhe renderia um prêmio Grammy.
Muitos saudosos do auge da bossa nova citam que o ritmo foi a trilha sonora de um país melhor, elegante, esperançoso; costumam associar esse viés ao bicampeonato mundial de futebol, ao otimismo de Juscelino Kubitschek, à construção de Brasília, à industrialização.
Sim, e não. O Brasil dos anos 1960 também era excludente, desigual, racista, preconceituoso. Boa parte da pobreza estava escondida no campo, 55% dos brasileiros viviam em áreas rurais, percentual que cairia para 15% em 2011 — uma explosão urbana que inflou periferias e favelas, exacerbou e explicitou desigualdades e estimulou a violência urbana.
Não dá pra dizer que era pacífico um país envolto num caos político que desaguaria no Golpe de 1964 e numa ditadura que duraria 21 anos. Nem tudo era na base do amor, do sorriso e da flor; no horizonte não havia apenas barquinhos que cortavam o mar ao entardecer.
Mas, sim, a bossa nova contribuiu muito para o viés de alta da esperança nacional. A beleza de ‘Getz/Gilberto’ reafirmou nossa originalidade e nossa capacidade de unir e reciclar elementos aparentemente díspares como o samba e um jazz mais branco que o original.
Ficou evidente que a sofisticação não era sinônimo de algo empolado, grandiloquente, cheio de alegorias e adereços. João, Tom e Astrud provaram que se podia fazer mais com menos, que todo o conhecimento musical que acumularam poderia ser reduzido ao essencial — como o piano do carioca Brasileiro de Almeida Jobim e as vozes dos dois cantores. Fora o supreendente violão do baiano Pereira de Oliveira. Havia um Brasil maior e bem mais humano e bonito que o dos tanques, botas e porões de tortura.
Pra não dizer que só falei de flores, o sax de Stan Getz, embora belíssimo, foi privilegiado em excesso na equalização do disco, algo que destoa da combinação de vozes e instrumentos — para usar uma linguagem da época, foi quase uma intervenção imperalista numa reunião de brasileiros. João Gilberto reclamaria muito disso.
E chega de saudade: ‘Getz/Gilberto’ está num streaming pertinho dos seus dedos, vale ouvi-lo. Nem que seja para renovar a ideia de um país mais legal, amoroso, inclusivo, solidário e, repito, sofisticado — no melhor sentido da palavra. Um país que alcance o tempo da delicadeza.
Fora que hoje — tão pilhados que estamos, viciados na velocidade da internet — conseguir muita calma pra pensar e ter tempo pra sonhar chega a ser um projeto de vida. ‘Getz/Gilberto’ é redentor, que lindo.
*Artigo para a edição de 12/06/23 do Correio da Manhã