Chimamanda, Agatha Christie e a censura à criação literária
Por Fernando Molica em 30 de março de 2023 | Comentários (2)
Hoje cedo eu retuitei e encaminhei para amigos escritores artigo publicado pela ‘Quatro cinco um’ em que Chimamanda Ngozi Adichie trata dos riscos da censura à liberdade de expressão. Foca, principalmente, na atuação das condenações em redes sociais e no trabalho, em editoras, dos “leitores sensíveis”, “pessoas cujo trabalho é limar palavras com potencial ofensivo de manuscritos”.
Poucas horas depois de ler o artigo, encontrei, na edição de hoje da ‘Folha de S.Paulo’, matéria sobre o tema: editora britânica de Agatha Christie, a HarperCollins, está – segundo o jornal ‘The Telegraph’ – promovendo uma nova poda em obras da escritora. Como base em pareceres de leitores sensíveis, foi retirado um comentário racista, feito por uma personagem que assim demonstra ser… racista. De acordo com a reportagem, em outro trecho suprimido, uma detetive amadora considera “adoráveis” os dentes brancos de uma funcionária de hotel.
Sim, Monteiro Lobato era racista – o que fica ainda mais evidente em algumas de suas cartas -, é preciso ter cuidado para não reproduzirmos, particularmente em salas de aula, preconceitos tão arraigados na sociedade. Mas o cancelamento de autores racistas ou a eliminação de trechos delicados de livros não será suficiente para acabar com violências pretéritas, atuais ou futuras cometidas com base na discriminação.
Seria terrível agir como Guido Orefice, personagem de ‘A vida é bela’, filme de Roberto Benigni. Para proteger seu filho dos horrores nazistas, o protagonista mente para o garoto, diz que todas aquelas barbáries, mesmo as passadas num campo de concentração, não passam de um jogo, uma brincadeira, uma espécie de teste de resistência. A intenção do Guido é linda, mas não pode ser tomada como um exemplo, não devemos ser infantilizados.
Não podemos achar que o racismo e todas as outras e infinitas formas de preconceito deixarão de existir caso essas manifestações sejam eliminadas de romances, contos, filmes, músicas e peças. A melhor maneira de evitar um novo holocausto é falar do Holocausto, não negá-lo. “Não podemos contar histórias que são apenas luz quando a vida em si é luz e escuridão. A literatura trata do fato de sermos sublimes e falhos”, comenta a premiada e ótima Chimamanda (escritora, mulher, negra, nigeriana).
“Alguns americanos, por exemplo, argumentam que os estudantes de hoje não deviam ter aulas sobre leis racistas dos anos 50 – como o Jim Crow (como ficaram conhecidas leis que estabeleciam a segregação no sul dos Estados Unidos) – porque isso os deixaria desconfortáveis. Assim, eles preferem prestar o desserviço de manter os jovens ignorantes de sua própria história”, escreve Chimamanda.
Há alguns anos, muitos – muitas, principalmente – implicaram com verso de ‘Tua cantiga’, de Chico Buarque, em que o narrador afirmava que, para ficar com sua nova paixão, largaria mulher e filhos. Como se a simples omissão do trecho fosse capaz de impedir a existência de homens que abandonam mulher e filhos. Livros, pelo menos, os bons livros, não são escritos para dar lições de bom comportamento, para dar qualquer lição. Livros – e filmes, peças, poemas, o que for – nos dão prazer e podem nos ajudar a entender o outro, mesmo aquele que comete crimes e vilanias.
No limite, a censura e o lugar de fala determinam que um autor só pode falar de seu próprio mundo. Homens brancos cisgêneros só poderiam tratar de outros homens brancos cisgêneros (Chico, ele de novo, teria que descartar suas canções compostas do ponto de vista de mulheres como ‘Olhos nos olhos’ e ‘Teresinha’). Isso aplicado de maneira radical impediria o diálogo, a tentativa de conversa, de mudança de opiniões a partir da compreensão dos motivos daquele que não pertence ao mesmo universo – étnico, social, sexual, ideológico – do autor. A literatura – assim como a vida – não pode ser reduzida a uma reafirmação de supostas verdades.
Óbvio que ainda mais num país racista, machista, injusto e excludente como o Brasil é importantíssimo e essencial que haja uma ampliação das vozes, o protagonismo literário não poderia continuar nas mesmas mãos de sempre. O quadro mudou um pouco nos últimos anos, mas de maneira ainda muito insuficiente para tentar equilibrar o descompasso que existe entre nós e que se reflete na produção artística.
É razoável supor que um escritor negro será capaz de tratar do racismo com mais propriedade que um branco, mas é importante lembrar que ele não será o escritor negro, será um deles. Negros, judeus, palestinos, mulheres, gays, botafoguenses, vascaínos podem ter valores em comum em seus respectivos universos, mas todos são diferentes entre si, cada um de nós vê o mundo de maneira particular. Brancos também podem e devem abordar do racismo, algo que afeta a sociedade como um todo, presente em praticamente em cada detalhe da vida do país; a questão é aumentar o número e a diversidade dos que falam, não silenciar essa ou aquela pessoa.
Como diz a Chimamanda: “Nós agora vivemos em tribos ideológicas muito bem definidas. Não precisamos mais ter discussões de verdade porque nossas posições já são pressupostas com base na nossa filiação tribal. Nossas tribos exigem de nós devoção à ortodoxia e não toleram a razão, só a fé.” Em outro trecho do artigo, ela ressalta: “Precisamos nos livrar do nosso vício em conforto.” A escritora ainda frisa que “o que hoje é considerado benigno pode perfeitamente se tornar ofensivo amanhã, pois a supressão do discurso não gira tanto em torno do discurso em si, mas da pessoa que censura”.
No artigo, a nigeriana trata de outras formas do princípio da liberdade de expressão, admite que considera “particularmente difícil” apoiá-lo em algumas situações. Sim, não é simples, é só ver os danos causados pelas fake news, as ameaças que representam. As discussões sobre como combatê-las e limitar sua disseminação são cruciais, é decisivo restringir a prática de retroalimentação do radicalismo e da insensatez promovida pelas redes sociais – não se pode naturalizar e promover, por exemplo, o nazismo. Mas esta é uma outra conversa, que vai além da criação artística. O ponto fundamental – e aí, volto ao ‘A vida é bela’ – é que não podemos ser privados de conhecer as maldades do mundo, até para que possamos combater os monstros externos e, mesmo, os que existem em nós. Vale lembrar que o Guido, o paizão, morre no fim do filme.
Obrigado, Lenira, que bom vê-la por aqui. Beijos.
Fernando MolicaMuito bom, Molica, a quem conheci bem jovem na antiga Manchete. Agradeço as reflexões que pretendo reoassar. Parabéns.
Lenira Alcure