Crônica de um amor black bloc
Por Fernando Molica em 07 de novembro de 2013 | Comentários (0)
O tapa, daqueles de mão aberta, de deixar vermelho o rosto da vítima, foi desferido assim que ela falou em Lacan. O rapaz se irritou com a associação entre atos violentos e aquela história de estruturação inconsciente da linguagem. Sem paciência para ouvir as teses do psicanalista francês — o mesmo que fora responsável pelo seu zero em filosofia –, murmurou algo sobre a babaquice daquelas lacanagens e fez estalar a face esquerda da cinquentona que conhecera na passeata. Ela que não reclamasse. Quem mandou segui-lo? Só percebera sua presença após destruir outra penca de caixas eletrônicos, devia ser a terceira ou quarta agência bancária da noite. Na saída da quinta, ou da sexta, notara que a mulher estava lá fora, não tirava os olhos dele.
“Você é P2?”, perguntou, enquanto lhe apertava os braços. “P2 aqui toma cacete, apanha que nem jornalista, tudo da mesma laia”, urrou, a um palmo do nariz da assustada senhora. Ela precisou de alguns segundos para lembrar que a sigla era uma referência aos PMs que se infiltravam em atos públicos. “Não, não sou policial, sou professora, vim aqui apoiar vocês, isso tudo é muito fascinante, os protestos, o inconformismo, tudo tem a ver com que o Manuel Castells disse, a violência simbólica que responde à violência institucional…”. Atordoado com o palavrório (“Deve ser efeito das bombas de gás…”), o rapaz puxou a mulher pelo braço, gritou que deveriam correr, escapar das balas de borracha.
Fugiram pela Alcindo Guanabara, pegaram a Senador Dantas, a Rua do Passeio e, enfim, estavam na Lapa. Depois de umas cervejas perto da Escadaria Selarón, foram parar num hotel ali perto. Meses antes — ela explicava –, estivera lá, assistira a uma peça do Plínio Marcos, montagem que questionava o autoritarismo do palco italiano, as convenções teatrais, o conceito de espetáculo. Calado, ele lamentava nunca ter experimentado aquele efeito alucinógeno do gás lacrimogêneo.
Subiram para o quarto, a professora pediu que ele recolocasse no rosto o casaco que, na manifestação, lhe servira de máscara. Excitada, quase despida, desandou a falar em semiologia, em inclusão digital e em Lacan — e veio o tapa. A agressão fez com que ela perdesse o fio do discurso, dali em diante repetiria frases menos acadêmicas: “Me taca uma pedra, um coquetel molotov. Me xinga de mídia burguesa; me bate, me faz de caixa eletrônico, sou seu Itaú, seu Bradesco, seu Santandeeeeeeeeeeer!” Ao amanhecer, sonada, ouviu a voz do jovem: “Tia, vou pra faculdade. Desculpa qualquer coisa. Você paga a conta, tá? Minha mesada acabou.”