Crueldade
Por Fernando Molica em 18 de maio de 2009 | Comentários (0)
Simonal – ninguém sabe o duro que dei é um flme sobre a crueldade. A crueldade é talvez o eixo que une os diferente momentos do (ótimo) documentário. Não parece, mas o gene do mal está presente até no início do filme, dedicado à ascensão e glória do cantor: um negro marrento, filho de empregada doméstica, dono de um talento espetacular, um sujeito capaz de hipnotizar platéias brancas e bem-nascidas que, ao seu comando, ficavam a repetir versos como “Uma vez eskindolêlê, iê iê/ Outra vez, eskindolálá”.
Aquele mundo, aquela riqueza, aquele deslumbre não tinham sido feitos para ele, o Brasil não foi feito para admitir um sucesso daqueles, um sucesso conquistado por um sujeito com as características de Simonal. Ele, a exemplo do seu contemporâneo Paulo César (que, ao ir para o Corinthians, ganharia o horroroso e grudento apelido de “Caju”), era um negro que fazia questão de não saber qual era o seu lugar, o lugar reservado para fenômenos como ele. Melhor: sabia, e não concordava com isso. Ganhava seu (muito) dinheiro e tratou de gastá-lo como queria, de gastá-lo como qualquer um, como qualquer branco (lembro agora de uma cena do “Assalto ao trem pagador”: o personagem do Reginaldo Farias, o louro mentor do assalto, diz para Tião Medonho que, ele, branco, podia usar a grana, comprar carros, esbanjar dinheiro. Ninguém estranharia. Já o Tião, negro, tinha que continuar na favela. Um negro com dinheiro chamaria a atenção de todo mundo).
No início dos anos 70, aquilo que então se chamava de “sistema” (assim mesmo, com aspas) tratou de armar uma vingança para Simonal, aquele negro abusado. Uma crueldade, digamos, sistêmica, social. Despreparado para tanto sucesso, o cantor cavou sua tragédia ao, brasileiramente, procurar na brutalidade a solução para um problema. Como bem ressalta Nelson Motta no filme: um outro cidadão, mais bem educado, com melhor entendimento dos códigos sociais e institucionais, teria reagido de outra maneira diante da suspeição de estar sendo roubado. Contrataria advogados, contadores, iria à Justiça. Simonal fez o que muitos brasileiros fariam: partiu para a porrada, para a covardia, apelou para a lei dos mais fortes (poucos anos antes, os militares tinham feito o mesmo para depor Jango). Foi cruel (olha a crueldade aí de novo) com seu contador. Achou que, por ser Simonal, estaria impune. Sifu – como diria o povo do “Pasquim”. Até por ser Simonal – um cara famoso, artista de sucesso – não poderia feito aquilo.
Mas fez: arrogante, ainda se vangloriou de seus supostos bons contatos entre os poderosos de então (no fundo, reciclou o então muito usado “Sabe com quem está falando?”). Fez o que muita gente fazia. Ainda mais naquele tempo em que o apoio à ditadura era muito grande (era sim: o país crescia muito, ganhava-se muito dinheiro, o Médici era aplaudido no Maracanã: em Piedade, morríamos de medo dos tais terroristas que seqüestravam diplomatas e assaltavam bancos). Simonal não sacou bem os códigos: o sabe-com-quem-está-falando nunca devia ser dito em público. Empresários e políticos que faturavam com a ditadura, que apoiavam e financiavam a Oban, eram contidos em suas declarações, não elogiavam gorilas, fingiam não saber da tortura. Eles sabiam como se portar, muitos deles ainda estão por aí, ricos e cheios de prestígio. Simonal não sabia essa regra, não tinha sido preparado para isso. Provou então da crueldade do tal sistema – aquele mundo de sucesso não era para pretos arrogantes como ele. Simonal mostrou que não sabia se comportar, não sabia jogar o jogo. Apelou para a crueldade explícita – deu no que deu.
Crueldade que se voltaria contra ele de maneira arrasadora. Virou bode expiatório, aquele não era um período para sutilezas, nada pior que ser considerado um dedo-duro, sequer foi defendido por seus supostos amigos/mlitares/gorilas. O resto, todo mundo sabe, o filme apenas acrescenta detalhes dramáticos e patéticos sobre a decadência de Simonal. Talvez seus descendentes tenham até o direito de reivindicar uma daquelas indenizações: por caminhos tortos, Simonal, o algoz do contador, acabou vítima da ditadura.
Detalhe: o filme mostra uma foto de Simonal em que, se não me engano, aparece, ao fundo, o locutor Cesar de Alencar, outro que foi chamado de dedo-duro por artistas que com ele trabalharam na Rádio Nacional.