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PONTOS DE PARTIDA, O BLOG DO MOLICA

Cultura do crime


Por Fernando Molica em 24 de março de 2009 | Comentários (7)

Vale dar uma olhada no vídeo obtido pelo jornal “O Dia” e que mostra muitas pessoas armadas numa festa em uma favela do chamado Complexo do Alemão. Está disponível na página da TV O Dia (no mecanismo de busca, digite “Churrascão dos bandidos”).

Viram? Assustador, né? Pois. Talvez por estar meio acostumado com esse tipo de imagem, o que mais me chocou não foi a exibição ostensiva de armas. O que mais me incomodou foi o ambiente da festa. Vale até fazer um teste, tente eliminar do vídeo as imagens com armas. O que sobra é uma típica festa suburbana, parecida com muitas que já freqüentei.

Moças de top e shortinho, homens de bermudas e bonés, muitas crianças, uma evidente timidez em muitos dos olhares. Cerveja, carne na grelha: um animado aniversário em um subúrbio qualquer. Tudo muito normal, inclusive as armas. As armas e seus detentores são as estrelas da festa, representam a força, o poder; a festa e toda a sua fartura são resultado do uso daquelas armas.

Esse é o grande problema: aqueles bandidos armados são aceitos, foram incorporados, fazem parte daquele grupo social. Os convidados estão na festa porque querem, porque acham legal, absolutamente normal. Não vêem problemas em comparecer à festa, ficar no mesmo ambiente com aqueles sujeitos carregados de fuzis e submetralhadoras. Acham razoável comer e beber produtos comprados com um dinheiro que, muito provavelmente, é fruto de alguma atividade criminosa.

A questão maior não é condenar aquelas pessoas, mas ressaltar o quanto a situação está ficando cada mais complexa. Há uma inegável expansão de uma lógica perigosa. Mais e mais pessoas, de um modo geral, moradoras de favelas, passam a adotar e a reproduzir uma espécie de cultura do crime – isso se manifesta em músicas, gestos, em roupas, na aceitação social do bandidos.

Sou capaz de apostar que a grande maioria dos convidados daquela festa trabalha ou estuda, não está envolvida em qualquer atividade criminosa. Mas também aposto que, de alguma forma, muitas daquelas pessoas se identificam com valores afirmados por aqueles bandidos: no fundo, se acham discriminados, vítimas de um Estado que não lhes oferece condições razoáveis de vida e mecanismos de ascensão social. Aqueles bandidos representam alguma forma de luta, de resistência à opressão do Estado. Isso é uma maluquice? Também acho, mas, como dizem uns parentes portugueses da minha mulher, “é o que é – e pronto”.

Combater criminosos – cem, mil, cem mil – é possível, o complicado é derrotar uma cultura baseada em valores dos bandidos e que se dissemina com uma incrível velocidade. Sei não, acho que é preciso prestar mais atenção nisso e agir com alguma rapidez. O Estado precisa provar que está mais ao lado daquelas pessoas do que os bandidos.

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Comentários
27 de março de 2009

O poder, qualquer poder, é sempre sedutor. A questão, creio, não apenas reprimir o poder ilegal, bandido. É fazer com que o poder formal seja também capaz de seduzir aquelas pessoas. abs.

Fernando Molica
26 de março de 2009

Também achei o vídeo revelador. Fiquei igualmente assustado com a relação de proximidade entre os bandidos e os moradores da favela. Dificilmente todos os presentes na festa são envolvidos diretamente com o comércio de drogas. Acho que há uma naturalização do crime, tornou-se banal, infelizmente, ao menos para os moradores da favela, transistar perto de uma pessoa armada. Não digo que aceitam isso, é uma realidade imposta. Claro que entre considerar normal ver um bando armado no caminho de casa e participar de um evento patrocinado por eles há uma distância enorme. Aqueles que aceitam o convite entram na engrenagem da violência. É fácil, penso eu, se deixar sugar. Claro que são coniventes com a violência, participam do jogo. No entanto, não seria um desejo de status, pelo menos para um grupo específico da favela, participar da festa? Passam a ser alguém quando são vistos e filmados ao lado do chefe do bando, ganham uma identidade. Acho que em todos os morros tem eventos similares, com bebida de graça e funk e pagode a noite toda. Se esse é o poder paralelo, eles estão colocando em prático o "pão e o circo".

Beto
25 de março de 2009

Obrigado, Renata. Espero que você continue gostando do livro até o fim. Quanto ao pedido de desculpas: como assim, pedir desculpas por um elogio tão simpático? abs, Molica

Fernando Molica
25 de março de 2009

Desculpe comentar aqui em um post que não fala sobre o livro, mas não achei outro espaço para isso no site... Estou lendo o Ponto da Partida e estou adorando. Já tinha gostado muito do Bandeira Negra (aliás eu trabalhava na DaConde quando fizemos um evento com vc na época do lançamento), mas esse superou as expectativas. Adoro a "cara" carioca das historias, todas as referencias à cidade e ao samba, e principalmente o humor. O diálogo entre pai e filha sobre a viagem à India rendeu boas risadas! Muito, muito bom!

Renata
25 de março de 2009

Mais uma vez perfeito Fernando. Será que somente nós, pobres mortais, percebemos isso? A cultura do crime certamente é o grande desafio. E, como você bem disse, está enraizada nas comunidades. Também temo que, talvez, já seja tarde demais.

Eduardo Freire
25 de março de 2009

Não posso negar: sou um blogueiro de sorte. Meus leitores/comentaristas nem são tantos assim, mas são ótimos, provocadores. Dão trabalho, mas é um bom trabalho. Vamos lá. 1.Concordo, claro. A tolerância social aos bicheiros contribuiu muito para a degradação da polícia do Rio. Considerava-se normal que eles dessem uma graninha para policiais, uma taxa para que pudessem exercer sua atividade. Deu no que deu: muitos que recebiam dinheiro de bicheiros passaram a extorquir traficantes. Vale ressalta que os bicheiros já foram bem mais ostensivos - chegaram a ser recebidos por um governador do Rio. Depois da condenação, passaram a agir de forma mais discreta. Mas não deixaram de agir. 2. Os convidados da festa dos traficantes do Alemão apenas reproduziram o que muita gente faz, gente que tem muito, muito mais grana do que eles: aceitar comida e bebida de bandidos. Isso ocorre em todas as camadas da sociedade. Considera-se razoável que fulanos freqüentem festas em casas de notórios ladrões do dinheiro público; condena-se o ferrado que vai filar uma carne no churrasco do trafica. Claro que ambos os comportamentos são condenáveis, revelam tolerância com a safadeza, com o crime. Só que a festa de um sai na "Caras", a do outro, nas páginas policiais dos jornais.

Fernando Molica
24 de março de 2009

Pois é. Quando me bato tanto contra a bicharada-máfia do jogo, quero mostrar justamente o escândalo de serem aceitos socialmente. Assim como esses bandidos armados da festa. A falta de armas à mostra (esse pessoal é mais 'discreto') é uma pequena diferença que não chega a significar uma distinção digna de consideração. Somos - nós, classe média letrada - diferentes dos que convivem passivamente e sem susto com os bandidos armados? Não creio. Até achamos bonitinho o que os 'grandes' fazem por suas comunidades...

Marcelo