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Desde que o samba é samba 1


Por Fernando Molica em 03 de março de 2009 | Comentários (11)

O banqueiro Antônio Carlos de Almeida Braga, o Braguinha, adora esportes, foi um dos pioneiros no patrocínio de modalidades olímpicas, fez seu nome ficar associado a times de vôlei que carregaram a marca de empresas como o Atlântica-Boavista. Em matéria de competições, ele tinha apenas uma grande restrição: não queria saber de esportes decididos por pontos atribuídos por juízes. Achava que o resultado tinha que ser conquistado no campo, na pista e na quadra pelos próprios atletas. Rejeitava ficar sujeito à subjetividade de juízes (e estamos pressupondo a honestidade dos encarregados de dar pontos e notas).

O parágrafo acima é só para cairmos em um tema delicadíssimo: o julgamento dos desfiles das escolas de samba do Rio. Um assunto recorrente que, desta vez, chega puxado pelo novo rebaixamento do Império Serrano. Não consegui ver o desfile do Império, mas a grita me parece ser justa – a apresentação da Mocidade foi de dar pena. Não consigo imaginar que os imperianos tenham feito pior – ainda que veja fragilidades complicadas na escola, como a decisão de mudar o foco do enredo concebido em 1976. É esquisito transformar o enredo e manter o mesmo samba – este deve ser baseado naquele. Mas não é isso que quero discutir aqui.

A polêmica levantada por muitos – e queridos – amigos imperianos tem um ponto de partida, uma divisão entre bem e mal. Do lado do mal está a Liesa, Liga Independente das Escolas de Samba, entidade que há anos organiza não apenas o desfile, mas que detém, sem concorrência, o direito de exploração do Sambódromo: é a dona do Carnaval. A Liesa foi fundada por homens que exerciam a dupla função de contraventores e de patronos de escolas. Isso, num momento em que grandes banqueiros do jogo do bicho carioca haviam superado antigas desavenças e se constituído em um bloco, uma organização batizada pelos jornais de Cúpula da Contravenção. A Liesa, de certa forma, deu cara legal para a tal da Cúpula. Nem todos os diretores da entidade são contraventores/bicheiros, mas estes sempre foram o seu esteio. Não fica difícil, portanto, associar a entidade ao mal.

A presença de bicheiros/patronos em escolas de samba não é nova, o caso mais notório talvez seja o de Natal da Portela. Mas, a partir de meados dos anos 70, com a ascensão da Beija-Flor de Nilópolis, bancada por Aniz (“Anísio”) Abrãao David, a situação começou a mudar. Um detalhe fundamental: entre 1953 e 1976 (ano da primeira vitória da Beija-Flor), apenas quatro escolas se revezavam na conquista do título: Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano (em 1960, como foram cinco campeãs, sobrou também para a Unidos da Capela).

O domínio das então quatro grandes era impossível de ser quebrado: em 1972, a Imperatriz Leopoldinense causou furor ao conquistar o quarto lugar. E isso só ocorreu porque seu samba tinha entrado na trilha sonora de uma novela da Globo, a “Bandeira 2”. O desfile era organizado pela Riotur e as apurações, que sempre geravam brigas, tinham que ser realizadas em batalhões da PM: ou seja, samba não deixava de ser um caso de polícia.

Os desfiles sofriam atrasos imensos, as vendas de ingressos eram marcadas por pancadaria, a pista de desfile acabava invariavelmente invadida por centenas de pessoas e havia um claro favorecimento para as quatro maiores. Não é novidade a história de se tirar pontos de escolas pequenas até mesmo em quesitos menos ligados ao poder econômico das agremiações: samba-enredo, bateria, mestre-sala e porta-bandeira. Isso já acontecia na época, chegava a ser escandaloso. Chagas Freitas, político que o então Estado da Guanabara e que depois se tornaria governador do novo Estado do Rio, usava o desfile como arma política: mandava anistiar as punições por atraso e volta e meia decidia não rebaixar nenhuma escola. Meninos, eu vi, eu li.

Mas o tricampeonato da Beija-Flor (76/77/78) arrombou a porteira. Campeões pelo Salgueiro nos dois anos anteriores (conquistas marcadas por polêmicas, por acusações até de falta de brasilidade nos enredos), Joãosinho Trinta, carnavalesco, e Laíla, diretor de Harmonia, foram para a escola de Nilópolis e mudaram a história das escolas de samba. Os mais tradicionalistas se exaltaram, a esquerda chiou (até hoje lembra de enredos anteriores da Beija-Flor, que exaltavam o Golpe de 1964, e ressalta que filhos do então presidente Figueiredo desfilavam na escola). Mas não teve jeito, a Beija-Flor mudou os parâmetros do Carnaval carioca. Mais grave: arrebentou o domínio das quatro grandes. Escolas como a Mociedade e a Imperatriz – igualmente patrocinadas por bicheiros – também passaram a ganhar títulos.

Pacificados, organizados, dispostos a melhorar sua imagem pública, os bicheiros pularam dos bastidores para o centro do palco. A construção do Sambódromo – que consagraria ainda mais o modelo de desfile que privilegia o visual e os carros imensos – abriria caminho para a criação da Liesa. Uma entidade que, de certa forma, representou a chegada de uma certa modernidade ao Carnaval carioca. Uma modernidade bandida? Crianças, vale lembrar: estamos falando do Brasil, não da Suécia. Se eu não apanhar muito, qualquer dia desses escrevo um novo capítulo.

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Comentários
04 de março de 2009

OK, irei lá. Abs.

Fernando Molica
04 de março de 2009

Caro João. Também não gosto da reedição de sambas enredos: o problema é que a Liesa dá uma grana (acho que R$ 500 mil) para quem faz isso. Como estava sem dinheiro, o Império topou. Quanto à Mocidade: quem tentou rebaixá-la foram seus diretores. O péssimo desfile (foi triste assisti-lo) está tendo conseqüências graves na escola, tá o maior quebra-pau lá. Abraços.

Fernando Molica
04 de março de 2009

Depois do seu relato, pergunto uma coisa : Já viu uma escola de samba ganhar um carnaval com um samba enredo do passado ? Agora quer rebaixar a Mocidade ? João Pereira

João Pereira
03 de março de 2009

É Fernando. Confesso que o pouco de alegria que tive neste carnaval foi ver o meu Salgueiro campeão ai no Rio, até porque aqui em sampa, penso, as coisas andam muito pior do que no pilar do samba carioca. Aqui as ligas entraram em cisão, criaram duas administrações, e o tal do enrosco, o "não sei o que", que puxa tudo pro lado da Mocidade Alegre vai levando os bondes da história em SP. Minha X-9 Paulistana não esteve tão bem, é verdade, mas tive que engolir o Kubrusly "achando" que não merecia o sexto lugar, conquistado por direito. Sempre soube dos "arroubos" e do dinheiro do "bixo" que rolava no carnaval carioca. Mas confesso que imaginei que havia amenizado e que a polêmica na hora de contar os votos dos jurados era só na paulicéia desvairada. Terei que convidá-lo, meu caro Molica, nobremente, mais uma vez, para ler minha reflexão em sampa, com o título "No Rufar dos Tambores, a Justiça!", escrito por este humilde Repórter Sem Fronteira. Quem sabe, um dia, um pouco de seriedade no samba, não nos traga de volta a alegria por ele a tanto perdida. Um forte abraço. Eduardo Freire.

Eduardo Freire
03 de março de 2009

Atualize seus hábitos de leitura, Moutinho...

Fernando Molica
03 de março de 2009

Mea culpa, Molica. Refiro-me a O Globo e Jornal do Brasil. Tv Globo nem menciono, pq é particularmente interessada na manutenção das coisas (o contrato da emissora com a Liesa até 2014, mesmo com a concessão terminando este ano, é um escândalo);

Marcelo
03 de março de 2009

Não posso falar pelos jornais genericamente. O 'Informe do Dia', coluna pela qual respondo, tem dado destaque ao assunto - sempre com chamadas na primeira página do jornal. Publicamos: 1. Na quinta, entrevista com o Paes falando sobre o assunto - ele disse que quer mais transparência, ainda que não tenha bancado que vá fazer uma licitação; 2. na sexta, também no abre, o Dionísio Lins dizendo que pediria CPI na Alerj; 3. na segunda, pingue-pongue com a vereadora Teresa Bergher, que presidiu a CPI da Liesa na Câmara Municipal. Ela disse que iria reapresentar um projeto que obriga a prefeitura da cuidar do carnaval; 4. hoje, duas notas com o Castanheira (é justo ouvir a Liesa, certo?). Ele diz que quer ouvir a opinião do Paes e dá um cacete na Teresa Bergher. Então: leia mais "O Dia", Moutinho... Abs.

Fernando Molica
03 de março de 2009

Molica, o poder público tem que exigir trasnparência (cadê os balancetes da Liesa) se responsabilizar pela indicação dos jurados, para evitar tráfico de influência. Isso é o mínimo. E deixo uma pergunta: a que será que se deve o silêncio dos jornais sobre a revolta do Império? Quem lê os sites de carnaval vê claramente o tamanho do barulho. Um deputado está reclhendo assinaturas para uma CPI e a escola pediu audiência ao prefeito Eduardo Paes. Parece, no entando, que nada está acontecendo. Repito: a que será que se deve esse silêncio? Estou constragido de ser jornalista.

Marcelo
03 de março de 2009

Você foi rápido, Moutinho. Mas vamos lá. Não procurei ser condescendente com a Liesa nem disse que os julgamentos são isentos - há pouquíssimos anos, minha querida Mangueira perdeu um campeonato para a Beija-Flor que desfilara com problemas sérios de acabamento nas alegorias. Uma derrota suspeita. Apenas procurei lembrar que esse negócio de julgamento sempre foi muito complicado. Veja só, a tradicionalíssima Vila Isabel só foi ser campeã em 1988 (com uma presidente, a Ruça, que resistia à entrada do Capitão Guimarães na escola). O período anterior à Liesa não foi marcado pela honestidade, seria hipocrisia não admitir isso. As quatro grandes tinham um poder absurdo, o roubo era escandaloso. Não se trata de defender um suposto mal menor, mas apenas de reconhecer fatos históricos. A zona era absurda: fui ao desfile pela primeira vez em 1982 e guardo um trauma, não vi o histórico desfile do Império. Não vi porque não agüentei: se não me engano, a apresentação começou por volta do meio-dia. Hoje a organização é muito melhor. A TV contribuiu? Claro que sim, mas a TV já transmitia o desfile havia muitos e muitos anos e isso só melhorou com a Liesa. A modernidade - com todas as suas contradições - não é linear, não se resume ao bem contra o mal. Acho que as escolas - donas do espetáculo - têm o direito de escolher quem as representa, assim como a federação de futebol representa os clubes. Mas acho também que o poder público, que coloca grana na festa e é o dono do Sambódromo, tem que exercer alguma mediação nesse processo. A Liesa pode ser dona do espetáculo, ter procuração da maioria das escolas, negociar direitos com a TV. Mas isso não implicaria na gestão do Sambódromo. Não consigo entender a razão de a Liga ter direito até definir quais empresas vão servir comida nos camarotes. A Beija-Flor tem sim um forte componente comunitário. A escola fica longe, não recebe público da Zona Sul. Mas essa comunidade depende de um patrono. Creio que a escola tende a entrar em decadência a partir da ausência do Anísio, assim como a Mociedade rolou ladeira abaixo depois da morte do Castor. A relação entre poderes absolutos e escolas de samba merece ser mais bem estudada (pretendo dar uns pitacos nisso mais adiante). Não esqueçamos que existe uma forte tradição autoritária no país e isso se reflete no universo das escolas e em suas comunidades. Sobre pacificação: o que disse é que no fim dos anos 70 e o início dos 80 houve uma inédita convivência pacífica entre os grandes e já velhos bicheiros. Até foram presos juntos... A guerra por pontos havia desaparecido (quem tentou furar o bloqueio, como o Mariel, foi assassinado). As mortes de figuras importantes como Castor abriram margem para novas gerações, novos negócios (as maquininhas) e novos crimes. Abraços solidários, Molica

Fernando Molica
03 de março de 2009

Outra coisa: os bicheiros estão pacificados? O que explica, então, os atentados à família da presidente do Salgueiro e ao presidente da Viradouro?

Marcelo
03 de março de 2009

Boa análise, Molica. Mas acho que o final do texto tem um leve aroma de opção pelo "mal menor". As escolas passaram a sair no horário por causa da TVGlobo, não da Liesa. O que a Liga fez foi legitimar o roubo - e os vabagundos que a lideram. Basta entrar um pouco nos intestinos das escolas que você percebe isso de cara. O fato de a escola que vem do Acesso abrir o desfile e inevitavelmente cair já é um indício de que a Liesa atua para manter um status quo mui questionavelmente conquistado. O poder público tem que entrar, sim. A festa é de interesse popular e há dinheiro público circulando. Esses olhares (ainda que parcialmente) condescendentes com a Liesa só prejudicam o carnaval. Assim como a ilusão de democracia e comunidade na Beija-Flor (e pensar que antigamente fisiologismo e tirania levavam pau de todo lado... agora servem até para legitimar seu Anísio e família).

Marcelo Moutinho