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Dona Risoleta e a volta da ditadura


Por Fernando Molica em 16 de março de 2015 | Comentários (0)

Lembro de dona Risoleta sempre que algum imbecil defende a volta da ditadura militar – só um imbecil pode reivindicar golpe em nome da democracia. Minha vizinha por alguns anos, Dona Risoleta era uma doce e simpática pernambucana que fazia um bolo de rolo espetacular. Ela morreu com mais de noventa anos, morreu sem saber o que foi feito do corpo de seu filho, Eduardo Collier Filho, um dos muitos desaparecidos pela ditadura.

Collier era Integrante da APML, Ação Popular Marxista Leninista, grupo derivado de organizações católicas de esquerda (Betinho e José Serra participaram da antiga AP, Ação Popular). O filho de dona Risoleta e o também militante Fernando Santa Cruz (pai de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB-RJ) foram sequestrados em fevereiro de 1974 (prisão ilegal é sequestro) por agentes do Exército lotados no DOI-Codi. Collier e Santa Cruz, que foram torturados e mortos, não tiveram envolvimento em ações armadas.

Ao saber das prisões, Dona Risoleta e Elzita, mãe de Santa Cruz, tentaram encontrar seus filhos, como registra este relatório da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

Como parte da perseverante cruzada que mantiveram durante anos em busca dos filhos, as duas mães, Elzita Santos Santa Cruz Oliveira e Risoleta Meira Collier, endereçaram uma carta ao novo chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, onde relatam todos os passos de sua peregrinação desde fevereiro e fornecem informações bem concretas: “Fomos a São Paulo, no dia 14 de março, ao DOI do II Exército, situado na rua Tomás Carvalhal, onde ocorreu o seguinte incidente: recebidas pelo carcereiro de plantão, que atendia pelo nome ou alcunha de ‘Marechal’, o mesmo anotou os nomes de nossos filhos e, após uma ausência de meia hora, retornou o referido funcionário, na ocasião comunicando que ‘hoje não é dia de visitas para Fernando e Eduardo’; em virtude da nossa insistência, foi declarado que os nossos filhos ali se encontravam presos, mas que só poderiam receber visitas no domingo próximo, após as 10 horas. Apesar disso se dispuseram a receber e entregar sacolas contendo roupas e objetos de uso pessoal. A convicção de que realmente eles estavam presos no local tornou-se absoluta quando o carcereiro, ao receber o nome de Fernando Augusto de Santa Cruz, completou-o, acrescentando o último sobrenome, Oliveira, sem que lhe fosse fornecido.
No domingo, ao comparecermos ao DOI, certos de que nos avistaríamos com nossos estimados filhos, como prometido, fomos comunicadas por um funcionário, que atendia pelo nome de Dr. Homero, de que Fernando e Eduardo ali não se encontravam, tratando-se tudo de um ‘lamentável equívoco’, ocasião em que foram devolvidas as sacolas”.

A esquerda cometeu muitos erros durante a ditadura, o principal deles foi a opção de muitos grupos pela luta armada. Mas nada justifica a tortura e o assassinato de presos, nada justifica a crueldade praticada contra dona Risoleta e dona Elzita. A ditadura foi danosa para os derrotados e, ironia, também para os vitoriosos – até hoje as Forças Armadas são obrigadas a se explicar por crimes cometidos por seus integrantes.

Protestar contra governos é legítimo. Gritos de Fora Fulano ou Fora Beltrana fazem parte da luta política, ainda que pedir impeachment antes de provas concretas contra a presidente da República demonstre precipitação – não se pode banalizar um instrumento tão radical. Mas é absurdo reivindicar a volta da ditadura. Organizadores de protestos contra Dilma Rousseff e o PT fariam um grande favor à causa que defendem se passassem a impedir, em seus atos, manifestações que pregam uma intervenção militar. A tolerância com quem tem saudades da tortura, dos assassinatos e da imprensa censurada (mecanismo que impedia que casos de corrupção fossem divulgados) não é razoável e mancha um movimento que diz defender a democracia. É a democracia que permite passeatas como a realizadas em 15 de março.

Em tempo: em 2012, já depois da morte de Dona Risoleta, o ex-delegado capixaba Antônio Cláudio Guerra revelaria que os corpos de Collier e de Santa Cruz foram incinerados num forno de uma usina de cana da cidade de Campos.

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