Ecos da escravidão à beira da Lagoa
Por Fernando Molica em 17 de maio de 2013 | Comentários (0)
Coluna Estação Carioca, jornal O DIA, 24/4:
Por volta das 11h30 de ontem, aquele canto da Lagoa chamado de Baixo Bebê estava como nos outros dias da semana. Mulheres negras, vestidas de branco, cuidavam de crianças branquinhas. São Jorge não foi suficiente para livrá-las da obrigação de levar os filhos dos patrões para brincar. Muitas devem dormir no trabalho, não tiveram como aproveitar o feriado.
O contraste remetia às gravuras de Debret, ao Brasil escravocrata. Aquele canto reforçou a certeza de que o passado continua muito presente. Ainda que valorizada, a mão-de-obra doméstica ainda é abundante e disponível até nos feriados.
A emenda que garante aos empregados domésticos os direitos dos outros trabalhadores escancarou o óbvio: o setor reproduz práticas vindas, sem escalas, da escravidão. Esta herança é que permitia se achar normal que uma pessoa ficasse à disposição de uma família das 8h de segunda até as 17h de sexta. Isso representa uma jornada de 105 horas semanais.
Sim, o empregado descansa parte desse tempo, mas está a mão para qualquer emergência, não se deita com quem gostaria de dormir, não pode sequer dar um beijinho de boa noite em seus próprios filhos, zelar por eles. É como se a empregada doméstica fosse uma pessoa diferente, que não tivesse família e a necessidade de dar e receber afetos.
É só comparar com o regime de quem trabalha em plataformas de petróleo — por cada 14 dias embarcados, eles chegam a gozar de 21 folgas. Amarradas a uma jornada pesada, algumas babás deixam seus filhos, durante toda a semana, em instituições como a Obra do Berço, ali perto do Baixo Bebê. Isto, para que possam cuidar dos filhos dos outros.
Crianças que são acostumadas a, desde pequenas, mandar em outros seres humanos, que não terão o privilégio de ser obrigadas a arrumar a cama e a lavar seus pratos — é assim que se faz nos países desenvolvidos, onde o serviço doméstico é raro.
A mudança na lei deverá gerar algum desemprego, mas arrisco dizer que até isto será bom, servirá como estímulo a jovens que deixavam de estudar diante da perspectiva de um bom salário como babás. O custo de uma doméstica também pressionará empresas a flexibilizar jornadas de trabalho — pais precisarão sair mais cedo para pegar seus filhos — e a aumentar a grita por mais creches públicas para todos. E, claro, obrigará muitos pais a cuidar de seus próprios filhos.