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Episódio relicário no Sambódromo


Por Fernando Molica em 20 de outubro de 2015 | Comentários (0)

Lá se vão 11 anos, mas a cena, das mais dramáticas que já vi no Sambódromo, é inesquecível. Levado pela beleza do samba de Silas de Oliveira e pelo entusiasmo da escola e do público, o mestre-sala Claudinho protegia a porta-bandeira Fabiana, que empunhava o pavilhão do Império Serrano.

Os sorrisos de ambos refletiam o orgulho e a esperança de um improvável, mas desejado, campeonato. Quem sabe sonhar não custa nada, como já cantara a Mocidade? Desta-vez-vai, vejam esta maravilha de cenário. Claudinho parecia desafiar o risco representado pela pista ainda molhada pela chuva. Mas ali, na divisa dos setores 3 e 5, diante das cabines de um grupo de jurados, o sonho do campeonato ficou impossível.

Tudo por conta de um imprevisto. O casal acabara de se apresentar para o júri, os movimentos não eram mais tão ousados, os rodopios diminuíam de intensidade, era preciso retomar a marcha do desfile. Num movimento meio despretensioso, um daqueles básicos do repertório de uma porta-bandeira, Fabiana desabou.
O verbo é esse mesmo: desabou como se sugada, como se vítima de uma implosão. Não caiu para o lado, não tropeçou. Salto quebrado? Torção de tornozelo? Ela caiu sobre si mesma, em linha reta, como um foguete lançado para baixo.

No solo, Fabiana ficou imóvel, aquilo não poderia estar acontecendo. Ela olhou para o parceiro, um olhar de incredulidade, como o que, dez anos depois, Julio Cesar exibiria ao levar os gols da Alemanha. Claudinho agiu como um cavalheiro, fez o que se espera de um mestre-sala. Deu um passo em direção à sua protegida, estendeu-lhe a mão e, eu vi, beijou-lhe a boca. Mais que um beijo, um gesto de quem transmite alma, ânima, o tal sopro da vida. Levanta-te e dança, levanta-te e baila. Beijos de tragédia grega, beijo bíblico, beijo que resume e explica todos os carnavais.

Fabiana obedeceu. Levantou-se e, aplaudida, voltou a bailar. Naquele momento, a bandeira e fantasia pesavam ainda mais. Traziam o peso de um Carnaval que se anunciava perdido por aquela queda. Não havia como recuperar o tombo, fazer o tempo voltar, mas ela ainda tinha muito asfalto-passarela pela frente. O público voltara a cantar o samba, os passistas da ala posterior se aproximavam.

Ressuscitada pelo beijo, Fabiana voltou à pista, à vida. A derrota anunciada não a eximia do compromisso de terminar o desfile. Até porque, no ano seguinte, haveria outro Carnaval, o ciclo não para, um Carnaval começa assim que o anterior termina. Desde que o samba é samba é assim.

(Estação Carioca, O DIA, 19/10)

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