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Escrita da brutalidade*


Por Fernando Molica em 12 de abril de 2009 | Comentários (5)

Nem deveria vestir essa carapuça – dos meus três romances, apenas um, o Notícias do Mirandão (Record), tem uma favela como cenário. Mesmo assim, fico um pouco incomodado com o tom meio depreciativo que volta e meia é colado em obras de ficção que abordam determinados aspectos da sociedade brasileira. Parece que há uma espécie de síndrome de Cidade de Deus ou mesmo uma vingança tardia dos que se sentem oprimidos pelo peso de Rubem Fonseca.

É como se fosse necessário combater um suposto predomínio do binômio pobreza-violência na produção ficcional brasileira contemporânea. O negócio ficou tão esquisito que a orelha não-assinada do último livro do Arthur Dapieve – o Black music (Objetiva), por sinal, muito bom – traz uma ressalva, quase uma justificativa: “Black music consegue construir uma narrativa dentro da favela sem, no entanto, resvalar na mais do que batida literatura da miséria.” Ou seja, a frase ressalta a existência de um gênero (“literatura da miséria”) e lhe atribui uma qualificação depreciativa (“mais do que batida”).

De certa forma, algo semelhante ocorreu comigo. Ao resenhar o Bandeira negra, amor para o “Jornal do Brasil” e o “Rascunho”, o Paulo Polzonoff Jr. escreveu: “Li a primeira página de Bandeira negra, amor, de Fernando Molica (Objetiva), torcendo o nariz. Meus preconceitos todos entraram em ebulição. Então se tratava de mais um livro sobre favela, marginais, bandidos vítimas e policiais algozes?” No fim das contas, a resenha foi bem positiva, mas o Polzonoff fez questão de ressaltar um certo cansaço diante de uma suposta tendência.

No ano passado, o caderno “Prosa & Verso”, de “O Globo”, abriu páginas para discutir o que foi chamado de “escrita da delicadeza”, uma expressão criada a partir do livro A delicadeza estética, experiência e paisagens (UnB/Finatec), de Denílson Lopes. A reportagem procurava analisar uma ruptura de parte da atual produção com a temática da violência – “urbana, sexual, sentimental” ¬- que teria marcado a produção da chamada Geração 90.

Confesso que fico meio surpreso com esses diagnósticos. Em primeiro lugar, não consigo ver esse alegado predomínio de um viés ficcional ancorado na violência ou na pobreza, algo como uma “escrita da brutalidade”. Este não é o principal mote de autores como Bernardo Carvalho, Milton Hatoum, Cíntia Moscovich, João Paulo Cuenca, Sérgio Rodrigues, Cristóvão Tezza, Ivana Arruda Leite, Daniel Galera, Marcelo Moutinho, Tatiana Salem Levy, Flávio Izhaki, Adriana Lisboa, João Gilberto Noll, Luiz Vilela, Carlos Heitor Cony e Antônio Torres (faço as citações a partir de uma rápida olhada aqui na minha estante).

Claro que há autores que trabalham mais o universo da pobreza e/ou violência, como Marçal Aquino, Férrez, Patrícia Melo, e mesmo o Paulo Lins de Cidade de Deus (livro lançado há 12 anos!). Mas será que haveria mesmo aí uma hegemonia, uma corrente-pra-frente, uma espécie de ordem unida que dominasse editoras, suplementos literários e até mesmo os nossos (tão poucos, de um modo geral) leitores? Engraçado, eu achava justamente o oposto, que haveria uma tendência de valorização de uma literatura classificada de mais intimista, mais focada no personagem e nas suas angústias. É como se, de forma pejorativa, alguém falasse na “mais que batida literatura voltada para o próprio umbigo”: uma redução tão lamentável quanto qualquer outra.

Insisto: livros podem ser bons ou ruins. A opção por um tema mais amplo ou por um de foco mais restrito não define, de cara, as qualidades de uma obra. Até porque a crítica genérica a uma literatura que aborde de forma mais explícita questões relacionadas à miséria ou à violência comete, aí sim, a violência de não admitir que diferentes autores possam trabalhar detalhes, observações e sentimentos mais, digamos, delicados (e uso, claro, a palavra como uma quase provocação). A opção de se ambientar uma história em uma favela ou em uma periferia não conduz necessariamente à criação de personagens esquemáticos e estereotipados. Tem gente que faz isso? Claro que sim. Como também há autores que cometem os mesmos pecados em livros de caráter mais intimista. A mediocridade e o uso/abuso de chavões não são privilégios de adeptos desse ou daquele universo. Há porque os universos podem – tendo a dizer que devem, mas é bom evitar receitas – se misturar.

Implico também com o rótulo de “realista”, seja o adjetivo usado para o elogio ou para a crítica. Uma espécie de senso comum prefere classificar de “realistas” apenas livros que, de alguma maneira, abordem aspectos mais amplos, em que o cenário – urbano, geralmente – influi de maneira mais decisiva na ação. Isso é um erro: o cenário “real” pode ser palco de delírios, de narrativas absolutamente deslocadas de episódios mais ou menos cotidianos. Ficção-científica pode ser realista, não? O inverso também é verdadeiro. Ou será que não há realismo – aqui, sem aspas e com um tom altamente elogioso – na decepção e, mesmo, no humor amargo que escorre de contos do meu amigo Marcelo Moutinho? Quem duvide, leia, por exemplo, o ótimo “Fogos”, incluído no seu Somos todos iguais nesta noite (Rocco). A dor da narradora é real, palpável, aguda. Tão real que emociona, me fez dela solidário e cúmplice. Detalhar emoções, revelá-las, também é ser realista. Revelar um “real” menos óbvio é uma qualidade de bons escritores. E, enfim, a realidade de um livro se constrói em suas páginas.

A caracterização pejorativa de “realista” a livros que, de alguma forma, trabalhem personagens pobres/miseráveis, que ousam se aproximar de favelas e periferias, chega a roçar no preconceito. Até porque essa mesma adjetivação não é, de um modo geral, aplicada a livros que tratam de personagens igualmente “reais” mas que não são pobres ou moradores de favelas. Ao associar pobreza a estereótipos e a uma certa esquematização, comete-se, repito, uma violência maior e mais ampla, a de se negar humanidade a tais personagens. Como se pobres pudessem ser apenas pobres e não amassem, não sonhassem, não vivenciassem contradições como qualquer ser humano. Temo por uma lógica que, no fundo, apenas disfarce preconceito, ojeriza ao diferente; uma forma diferenciada e mais sofisticada de exercitar uma apartação cada vez mais presente nos centros urbanos brasileiros, uma espécie de fobia aos pobres e ao que eles, de uma certa forma, passaram a representar – favelas, violência. Não seriam dignos, portanto, de entrar em nosso imaginário e em nossas estantes.

Como disse Chico Buarque numa entrevista a Fernando Barros e Silva publicada, na “Folha de S.Paulo”, em 26 de dezembro de 2004: “Na alta classe média, disse, “assim como já houve um esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário. O medo da violência se transformou em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao motoboy, ao sujeito que tem carro velho, ao sujeito que anda mal vestido.”

Por favor, não me acusem de simplismo, de defender algo como “literatura engajada”, de personificar uma espécie de viúva do Centro Popular de Cultura da UNE. Insisto que há livros bons e ruins, independentemente de seus temas, focos e propostas narrativas. Tenho a horror uma literatura bem intencionada e quase religiosa, que enaltece os pobres, ridiculariza os ricos e que tais. Apenas acho que é melhor julgar livros pelo que está escrito em suas páginas. Se a literatura é boa, ela não é “de favela” ou “de gabinete”; não é “realista” ou “intimista”. É apenas boa literatura.

*Este texto foi, em sua maior parte, escrito no ano passado. Na época, achei melhor não publicá-lo. Lembrei dele outro dia, dei uma revisada e resolvi colocá-lo na roda.

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Comentários
28 de abril de 2009

Obrigado, meu caro. Abraços.

Fernando Molica
28 de abril de 2009

Muito bom o seu texto, Molica. Grande parte de nossa crítica e história literárias, desde o século XIX, tem um olhar bastante limitado sobre conceitos complexos como realismo, representação etc. e seu texto mostra um olhar diferente sobre velhos temas. Valeu.

Flávio Carneiro
13 de abril de 2009

Obrigado, meu caro. Resposta ao P&V de sábado? Não mesmo. O P&V que me ajudou a parir o texto foi outro, o que tratou da tal escrita da delicadeza. Mas, como deixo claro no texto, há outras fontes de inspiração. Decidi publicar o texto antes de ler o P&V de sábado. Ah, a citação é apenas justa.

Fernando Molica
13 de abril de 2009

Muito bom, o texto. Reação ao Prosa e Verso de sábado? rs Ah, e obrigado pela gentil e generosa menção...

Marcelo Moutinho
12 de abril de 2009

Os esteriótipos são generalizações simplificadoras que servem para facilitar a identificação de certas coisas como pertencentes a um grupo, um tipo, uma qualidade ou um gênero... Não gosto de esteriótipos. Para nada. Ou seja, para a literatura também não. Puta texto, malandro. Abraço!

Diego Moreira