Figurinhas que ficaram na infância
Por Fernando Molica em 19 de maio de 2014 | Comentários (0)
Coluna Estação Carioca, jornal O DIA, 19/5/14.
Ao contrário de muita gente, eu, apesar de gostar de futebol, não estou fazendo o álbum da Copa. Acho que isso tem a ver com um trauma de infância. Lá pelos meus 7 anos, havia, em Piedade, uma febre em torno de um álbum, nem sei mais qual era o seu tema. Mas lembro que penei para conseguir uma figurinha difícil. A imagem completava a página em que um misterioso personagem envergava a camisa da Seleção — a figurinha trazia o rosto do sujeito.
Depois de comprar muitos e muitos envelopes, de reunir um bolo imenso de cromos (só editor paulista deve chamar figurinha de cromo), consegui o que faltava; acho que o adquiri no mercado paralelo, sei lá. O tal jogador era o… Roberto Carlos, ele mesmo, o cantor, Rei da Juventude, Rei da Jovem Guarda, o rei daquele álbum.
Desde então comecei a implicar com essa história de investir uma grana para comprar algo no escuro; o gasto e a frustração aumentam na medida em que o álbum vai sendo preenchido, as figurinhas repetidas passam a se acumular. Suspeito que, aí, passei a ficar adulto, o sentido prático começou a dar uns dribles na fantasia. Anos depois, quando meus filhos eram pequenos, as figurinhas voltaram à minha vida. As editoras já então incluíam nos álbuns uma cartela que, se preenchida e enviada pelo correio, permitia a compra das imagens que faltavam. Em tese, o recurso — uma espécie de Tapetão infantojuvenil, de embargo infringente –, deveria ser usado apenas em última instância; afinal, eliminava o efeito-surpresa, a emoção de abrir o envelope e encontrar aquela imagem necessária para concluir o álbum.
Uma vez, porém, perdi a paciência e saí marcando todas as muitas figurinhas que faltavam, umas 80 de um total de 200 e poucas. Fiz uma espécie de gol com a mão, um roubado que nem de longe foi mais gostoso. Sei que hoje tenho até uma certa inveja de amigos ainda fascinados pelas figurinhas, é como se eles conservassem algo dos tempos de criança.Como consolo, acho que a fixação nos álbuns aponta para um outro tipo de lógica infantil, a que busca um mundo de falsas surpresas. Naquelas páginas, todos têm lugar definido, a brincadeira termina quando tudo fica arrumadinho. Ao crescer, percebemos que o tal mundo de comercial de margarina só existe nos comerciais de margarina. A vida é bagunçada, figurinhas se misturam, nem sempre dá para trocá-las, a repetição de imagens pode cansar. Volta e meia dolorosa, a vida é surpreendente e desarrumada, ninguém tem lugar marcado, não dá sequer para imaginar o que vem nos envelopes.