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Funk, samba e representatividade


Por Fernando Molica em 19 de janeiro de 2018 | Comentários (0)

Mais do que condenar o funk por músicas que reforçam o machismo, elogiam setores da bandidagem e naturalizam e mesmo estimulam a violência – aí incluída a sexual -, seria interessante ver nessas letras sintomas de uma realidade que não se resolve com a retirada de uma canção do Spotify. A censura não resolve nada.

MC Diguinho, autor de ‘Surubinha de leve’, diz que a música revela a realidade em que ele e muitos brasileiros vivem. O problema, no caso, não está em abordar uma dada realidade, a questão é outra: o incentivo e a exaltação de condutas criminosas – a letra é bem imperativa: “Taca a bebida/ taca a pica/ E abandona na rua”.

Mas, sim. ‘Surubinha’ também ilustra uma realidade violenta, desumana, machista, cruel, um cotidiano presente na vida de milhões de jovens – no lugar da tríade sal-sol-sul entra a tiro-porrada-bomba. São jovens que nascem e crescem em áreas de urbanização precária, dominadas por vendedores de drogas ou milicianos e que veem no Estado um outro inimigo – amigos não disparam tiros a esmo de um helicóptero, não humilham, não torturam e matam. Seria patético cobrar desses jovens que tratassem de barquinhos que vão, de tardinhas que caem. A mesma sociedade que nega direitos básicos a moradores de favelas não pode querer determinar o que essas pessoas vão compor e cantar.

Com ou sem apologia a atividades criminosas, o funk exerce, já há algum tempo, o papel de cronista de áreas da cidade que só costumam ser notícia em caso de tiroteios. Um papel reconhecido por muitos e muitos jovens que se identificam com aquela realidade gritada por vozes esganiçadas, duras, fora do tom. A própria lógica de produção do funk, que dispensa o domínio de instrumentos musicais, reforça o papel do gênero como porta-voz da exclusão, de arte de subsistência.

E não vale falar em pressão da mídia, das rádios. Funk é música de pobre, demorou a ser reconhecido como gênero, ralou muito para encontrar espaço nos veículos tradicionais. Quem vive do comércio da música quer ganhar dinheiro, pode ser com samba, rock, ópera ou funk. Quem gosta de funk gosta porque gosta, não por ter sido obrigado.

A queridíssima Flavia Oliveira postou, nesta sexta, um misto de desabafo e lamento pelo fato do ensaio de sua Beija-Flor ter sido interrompido – e logo depois, encerrado – por uma cantora de funk. O protesto e a tristeza são legítimos (também fiquei chocado) mas permitem uma reflexão sobre a identidade que o samba vem assumindo nos últimos anos e seu progressivo distanciamento das comunidades que o embalaram.

Narcisistas, as escolas de samba parecem ter sido seduzidas pelo brilho que criaram para conquistar corações alheios ao seu mundo. Cultivaram tanto a relação com poderes externos (bicheiros, políticos, musas, rainhas) que fecharam os olhos para os responsáveis por seu nascimento e crescimento.

A perspectiva do show fez com que, aos poucos, muitos dos elementos que constituem o desfile fossem terceirizados, entregues a pessoas de fora, fenômeno que começou com o aspecto visual, com a chegada de carnavalescos com formação em belas artes. Alas de compositores perderam importância – hoje, qualquer pessoa pode inscrever samba nas escolas -, os ensaios passaram a ser feitos longe das comunidades – no grupo especial, a Mangueira é a única que ensaia em quadra que fica dentro de favela.

Este diálogo com setores externos vem desde o início das escolas cariocas, que sempre negociaram com poder e buscaram legitimação social. Mas esta porta aberta que viabilizou seu crescimento é a mesma que, agora, ameaça sua legitimidade. Os protestos contra a decisão do prefeito de reduzir a verba para as escolas foram tímidos e localizados. Um dos líderes de igreja entranhada em áreas populares, Marcelo Crivella sabia que seu gesto não teria consequências maiores.

O problema maior não é a existência de uma ‘Surubinha de leve’, mas o fato de a canção ter virado hit, ser admirada por milhões de pessoas, algo que demonstra insensibilidade, desumanização, desrespeito a direitos básicos. Mas demonstra também a irresponsabilidade social daqueles que deveriam gerar melhores condições de vida para a população. A surubinha é também consequência da grande suruba nacional, da violência em larga escala cometida e permitida pelo Estado.

MC Diguinho errou feio ao criar a tal canção, mas não dá pra negar que ele se inspirou no que vive, no que vê. Não dá para tratar o sintoma como causa de uma doença. Funk-exaltação da brutalidade e da violência sexual, ‘Surubinha’ é um alerta, um grito, um tiro como tantos outros. É fundamental entender que tiros são esses para tentar ao menos diminuir as condições que estimulam seus disparos.

Para encerrar: sempre lembro daquele suposto diálogo entre Picasso e um oficial nazista que tinha acabado de conhecer ‘Guernica’, quadro que denuncia os horrores do bombardeio à cidade feito, durante a Guerra Civil, por caças alemães. O sujeito teria perguntado ao pintor: “Foi você que fez isto?”. Ele respondeu: “Não, foram vocês.”

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