Indígenas têm nomes*
Por Fernando Molica em 03 de fevereiro de 2023 | Comentários (0)
Em entrevista publicada na última quinta-feira no GLOBO, o ambientalista, filósofo e escritor Ailton Krenak ressaltou que “os algozes dos ianomâmis têm nome, e alguns continuam ocupando cargos públicos”. Sim, é fundamental nominar, investigar e punir os responsáveis pelo genocídio que agora acompanhamos. Mas, por outros motivos, é necessário também divulgar os nomes das vítimas dos ataques. Nomear essas pessoas é importante para deixar de reduzi-las a partes de um conjunto, para reforçar que são indivíduos, e não um grupamento exótico de interesse apenas antropológico.
Quem visita, no Museu do Amanhã, no Rio, a belíssima a exposição de Sebastião Salgado sobre a Amazônia percebe que ele teve o cuidado de identificar praticamente todos os indígenas cujas imagens são exibidas. O xamã fotografado durante um ritual não é um líder religioso anônimo, mas o xamã Ângelo Barcelos. A jovem da Aldeia Mutum mostrada em close, de cocar e com o rosto pintado, tem nome e sobrenome, Bela Yawanawá.
A identificação feita por Salgado e a consequente individualização reforçam que aquelas pessoas são seres humanos. Cada uma tem nome, família, desejos, sonhos, frustrações e alegrias. São assim como eu sou, como você é, como somos todos. Os ianomâmis fazem parte de um coletivo, assim como integramos diferentes grupos, mas cada um de nós tem uma existência que vai além das comunidades em que nascemos e daquelas em que optamos por nos incluir.
É preciso reforçar essa obviedade, até para frisar que cada ianomâni morto pelas ações e omissões criminosas é uma pessoa que foi perdida, que não teve mais tempo para amar, namorar, cuidar dos filhos, comer e conversar com amigos, pescar, caçar, rezar, brincar, ver o pôr do sol. Cada morte entristeceu parentes, pessoas da comunidade, sabotou a alegria de muita gente. É preciso saber quem morreu, o que fazia, como vivia.
A individualização nos aproxima de outras pessoas, faz que com elas partilhemos alegrias e tristezas. O Holocausto implantado pelos nazistas, o massacre sistemático de negros e pobres no Brasil e o incêndio da boate Kiss doem ainda mais quando conhecemos alguém que perdeu parentes num campo de concentração, numa favela carioca ou na casa noturna de Santa Maria. Nós, jornalistas, temos nossa parcela de responsabilidade — de um modo geral, identificamos os participantes de uma reunião ministerial ou os jogadores reunidos para um treino, mas não demonstramos o mesmo cuidado quando publicamos imagens de representantes de grupos minoritários ou discriminados.
Na mesma entrevista ao repórter Ruan de Sousa Gabriel, Krenak afirmou que indígenas são tratados como sub-humanos e que os ianomâmis “precisam ser contados no rol da Humanidade”. Apurar e publicar seus nomes, individualizar suas vidas e trajetórias é um movimento necessário para que apuremos nossa visão e nossa solidariedade, para aumentar a indignação da sociedade e o apelo pela punição dos culpados do massacre de que são vítimas.
*Artigo que publiquei no último dia 2, em O Globo.