Joelhaço em Hitler*
Por Fernando Molica em 03 de julho de 2023 | Comentários (0)
Como às segundas este espaço é reservado para tratar de arte e cultura, cito uma obra que vi numa visita ao o Reichstag, sede do parlamento alemão, em Berlim. Criada pelo francês Christian Boltanski (1944-1921), “Arquivo dos parlamentares alemães” está no subsolo do prédio.
Trata-se de um corredor onde placas de metal simulam gavetas identificadas com os nomes de quase cinco mil eleitos para o parlamento entre 1919 e 1999, entre elas, Adolph Hitler. Filho de pai judeu, Boltanski também reservou espaço para outros nazistas, como Josef Goebbels e Hermann Göring.
Ao passar pelo corredor, a guia chamou a atenção para o nome de Hilter e para uma espécie de intervenção feita por visitantes, uma contribuição: a gaveta dedicada ao líder nazista estava amassada. Alguns dos passam pela obra agem como como o Analista de Bagé criado por Luis Fernando Verissimo fazia com pacientes — dão um joelhaço no nome do maior assassino da história contemporânea. Volta e meia, placas dedicadas a Goebbels e Göring também são danificadas.
O Reichstag expõe em muitas paredes outra e improvável obra de arte, pichações ofensivas feitas por militares soviéticos que ocuparam o prédio na derrota nazista. Os responsáveis pela restauração do prédio — incendiado em 1933 e que só em 1999, depois da reunificação alemã, voltou a ser sede do parlamento — mantiveram os xingamentos, alguns ficam ao lado do gabinete do chanceler federal.
Pode parecer espantoso que um país conserve, na sede de seu poder, ofensas pintadas por inimigos, mas a opção foi sábia, e serve de alerta. As pichações em alfabeto cirílico lembram que a população alemã levou ao poder um partido racista, que atacava a democracia. Uma organização liderada por um homem, Hitler, um ex-militar que em 1923 tentara um golpe de estado.
Ao não retirar os nomes dos nazistas da obra de Boltanski e ao manter as ofensas soviéticas, os alemães ressaltam, para os próprios cidadãos e para visitantes de todo mundo, que é preciso lembrar para não repetir erros e crimes. Ao amassar as placas com nomes de nazistas, visitantes mostram que a arte é viva.
No Brasil, gostamos de idealizar o passado ou mesmo esquecê-lo. Há poucos anos, donos de uma fazenda no interior fluminense recebiam turistas à moda antiga, havia negros representando o papel de escravizados. Comandantes militares evitam chamar de ditadura a ditadura que seus antecessores — apoiados por parte da sociedade civil, é bom ressaltar — implantaram em 1964.
Vale o exemplo alemão: romantizar o passado representa um risco para o presente e para o futuro. Ao negar a ditadura na Venezuela, o presidente Lula também erra, democracia não pode ser relativizada, ditaduras são ditaduras.
Há quem ache exagerada a pena de inegibilidade aplicada pelo Tribunal Superior Eleitoral a Jair Bolsonaro, político que desde o tempo de deputado nunca escondeu intenções golpistas. Trata-se de uma velha discussão: a democracia pode ser tão ampla a ponto de permitir ataques à própria liberdade? Antes de responder, vale lembrar o que foi o nazismo, o que são as ditaduras — de qualquer viés ideológico. Um joelhaço constitucional tem o seu valor.
*Correio da Manhã, 03/7/23.