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Laços de família


Por Fernando Molica em 14 de abril de 2012 | Comentários (0)

Texto publicado no jornal ‘A União’, de João Pessoa, no dia 11/4.

Em seu quarto romance, jornalista escreveu uma obra de ficção a partir de fatos reais.

Um romance baseado na vida e obra de seu próprio bisavô, o compositor, maestro, pianista e crítico musical Julio Reis é a nova obra literária de Fernando Molica. Após três romances ambientados na contemporaneidade, o escritor volta ao Rio de Janeiro do início do século XX para compor um rico panorama de uma época de grandes mudanças e resgatar a obra de um grande artista brasileiro que o tempo quis esquecer.

Qual foi sua motivação para escrever este livro?
Soube da existência do Julio Reis no início da adolescência, eu morava em Piedade, perto dos meus avós, e ia muito na casa deles. Foi quando fiquei sabendo que o pai de meu avô Mário, portanto, meu bisavô, tinha sido um compositor clássico, fiquei muito surpreso com a história. A figura de um compositor da chamada música clássica me parecia meio incompatível com a vida simples de Piedade. Desde então, passei a acompanhar a luta do meu avô, que praticamente dedicou sua vida à luta pela divulgação da obra do pai. Ele mandava cartas para autoridades, presidentes da República e diretores de jornais em busca da possibilidade de divulgação da obra do Julio Reis. Tudo o que ele queria era poder voltar a ouvir aquelas composições, em especial, Vigília d’armas, que estreou em 1915, no Theatro Lyrico, que ficava na Avenida 13 de Maio. Depois, ela só voltou a ser executada em 1923. Meu avô foi também o responsável por me levar aos primeiros concertos, de um modo geral, programas gratuitos como vesperais no Theatro Municipal e concertos do Projeto Aquarius. Sou muito grato a ele, que me apresentou a um tipo de música. A história de Julio Reis era algo que me martelava, eu achava que poderia ser contada, que merecia ser contada. Houve também um episódio curioso: há uns anos, creio que em 1996, eu estava no Museu d’Orsay, em Paris, e, ao entrar numa sala, dei de cara com o quadro Le rêve (O sonho), de um pintor francês chamado Édouard Detaille. Um quadro imenso, de uns doze metros quadrados. Este quadro servira de inspiração para Vigília d’armas, uma gravura que o reproduzia fora colada por Julio Reis na capa da partitura. Eu vira aquela imagem dezenas de vezes. Fiquei meio baqueado ao dar de cara com o quadro no museu, nunca pensei em vê-lo exposto. Na época, meu avô já havia morrido e talvez este episódio tenha, de alguma forma, tenha me estimulado um pouco mais a tentar escrever um livro sobre Julio Reis. Não cheguei a ser obcecado por isso, mas por volta de 2007, quando concluía meu segundo romance, comecei a achar que estava chegando a hora de tratar do Julio Reis. Na época, o que restara do acervo dele tinha vindo para minha casa, pois meu avô, que morreu em 1992, queria que eu ficasse responsável pelo material, que tratasse de sua doação para a Biblioteca Nacional. O fato de ter o acervo ao meu alcance facilitou muito o trabalho de pesquisa. O Inventário de Julio Reis é um livro de ficção, mas baseado na vida do personagem, era importante pontuar a história com elementos da realidade em que ele viveu.

Como é que foi criar uma ficção a partir de uma realidade, de um personagem real?
Foi meio complicado encontrar um viés para o livro. Julio Reis deixou um acervo bem organizado, reuniu partituras e muitos recortes de jornais — críticas que escreveu e o material sobre suas composições. Mas praticamente não havia detalhes sobre sua vida particular. O material permitia conhecer o profissional, mas não a pessoa. Eu não queria fazer uma biografia, um livro de não-ficção. O que me interessava era tentar descobrir o que movia aquele homem, quais eram seus sonhos, seus desejos, suas frustrações. Em 2007 e 2008 conversei algumas vezes com uma tia mais velha, Yara, que chegou a conviver com o avô (ela morreria no fim de 2008). Ela me contou algumas histórias sobre ele, sobre seu temperamento. Eu me lembrava também das conversas com meu avô, Frederico Mário. Ao reunir todas as informações, consegui chegar ao que classifico como um perfil bem razoável do personagem — o desafio era colocá-lo, digamos, para jogar, para atuar. Eu formulei uma hipótese para o Julio Reis a partir de dados concretos: suas críticas, suas composições, suas lutas. Escrevi com muita liberdade, tentei apenas não trair o personagem, um cuidado que também tenho quando crio qualquer outro personagem de ficção. Enfim, não existe uma verdade absoluta, mesmo em biografias, o autor destaca determinadas características, opta por este ou aquele caminho. A produção documental também é, de certa forma, ficcional.

Como era o Rio de Janeiro à época de Julio Reis? E o cenário musical da cidade, qual era?
O Rio era a capital federal, centro da República, aqui se concentrava o que de melhor e mais importante havia na política, na academia, nas artes. O cenário musical era muito interessante, companhias internacionais de ópera se revezavam por aqui, ocupavam quatro, cinco teatros. Grandes estrelas da música lírica faziam temporadas na cidade. O pai de Julio Reis veio para o Rio nomeado pelo governo imperial, veio trabalhar. O início do século 20, uma época fundamental para a vida de Julio Reis, foi também um período de muitas transformações. Houve a I Guerra Mundial, a Revolução Soviética. Por aqui, tivemos revoltas militares, uma série de dificuldades econômicas e politicas relacionadas à substituição do Império pela República. Foi uma época de consolidação de conquistas científicas e industriais, da expansão da eletricidade, da substituição dos bondes puxados por burros pelos elétricos, da chegada do automóvel. Foi quando houve a reformulação do Centro da cidade, a derrubada de milhares de casas, a abertura de avenidas, como a atual Rio Branco, a construção do Theatro Municipal. A modernidade também chegou às artes, à música, é só ver os movimentos artísticos que afloraram naquela época. Julio, de certa forma, foi uma vítima deste choque de modernidade. Ele estava muito atrelado a uma visão mais clássica da música, suas referências estavam nos séculos XVIII e XIX. Ele se assustou com a chegada de compositores como Debussy e Stravinsky e, depois, de Villa-Lobos. Ele não poupava a modernização da música, era ferrenho na defesa de padrões mais clássicos, baseados na melodia e na harmonia. Não deixava de atacar o que chamava de “música sem música”. De certa forma, JR foi atropelado pela modernidade.

Julio Reis chegou a ser um compositor de sucesso?
Ele era uma pessoa muito conhecida na cidade, dezenas de suas composições foram editadas e lançadas — o Rio era uma cidade cheia de pianos, as pessoas compravam partituras para tocá-las em suas casas. Como era um polemista, despertava discussões sobre os rumos da música, publicou livros de crítica e de ficção. Algumas de suas obras de maior peso — sinfonias e mesmo uma ópera — foram executadas em teatros da cidade. Ele também se apresentava como pianista, era uma pessoa muito ativa no cenário musical.

Quais foram as referências musicais do compositor? E que músicos ele detestava?
Ele adorava os clássicos: Beethoven, Chopin, Verdi, Wagner. Entre os brasileiros, admirava Carlos Gomes, que chegou a indicá-lo para um período de estudos na Europa. Tinha horror a tudo o que era moderno, que rompia com o convencionalismo da música. Dizia que a nova forma de compor desprezava a melodia, chegou a dizer que a música de Debussy imitava o cair da chuva, “traduz em música o sono e o vozerio dos sapos num charco; revela as confidências de um casal de cegonhas e reproduz o mutismo filosófico de um orangotango em êxtase ao aparecimento da lua-nova”.

Quais foram os motivos para a sua decadência como artista?
Em primeiro lugar, havia as dificuldades naturais de quem se dedica à chamada música clássica ou de concerto. Mesmo hoje, pouquíssimos são os compositores brasileiros que integram o repertório das orquestras. Há quanto tempo as óperas de Carlos Gomes não são montadas no Rio? Lembro que assisti a uma montagem de O Guarani há uns 20 anos, acho que foi a última no Municipal. Volta e meia temos programas que incluem peças de Villa-Lobos, de Carmargo Guarnieri, mas isso não é assim tão comum. O Museu Villa-Lobos, nosso principal compositor, é pequeno, pouco atrativo. Ele mereceria muito mais. Nossos compositores contemporâneos são praticamente desconhecidos e, claro, há muita gente compondo. A, digamos, seleção natural talvez seja mais cruel em algumas formas de expressão artística. Em sua época, Julio Reis já esbravejava contra a falta de apoio aos músicos brasileiros. No século XX, a música de concerto também passou a sofrer a concorrência de outras diversões, como o cinema, o futebol, a própria música popular. Hoje, há — e é fundamental que isto ocorra — um grande esforço de recuperação de nossa tradição musical de caráter mais popular, mas a produção de música para concerto continua meio escanteada. Julio também era pobre, tanto que, na velhice, precisou morar com o filho em Piedade, isto também colaborou para seu esquecimento.

Como foi o episódio da ópera que teria verbas governamentais para sua montagem?
Esse episódio, o da Sóror Mariana foi fundamental na vida de meu bisavô. Ele usou como libreto uma peça do português Júlio Dantas, o mesmo autor de A ceia dos cardeais. Ficou fascinado com o texto e, em pouquíssimo tempo, compôs a ópera. Com seus contatos no Senado, conseguiu a aprovação de uma verba para a montagem de Sóror Mariana, e acabou se desgastando muito para tentar liberar o dinheiro.

Como escritor, você tem romances, contos e uma obra de não-ficção. Como você definiria este livro dentro de sua trajetória literária?
Eu tenho um livro de não-ficção, O homem que morreu três vezes — o engraçado é que o personagem principal do livro, o Antonio Expedito Carvalho Perera parece ter saído da ficção. Organizei também três livros de reportagens para a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). Mas, como escritor, me dedico mesmo à ficção. O inventário de Julio Reis é meu quarto romance. Também tenho contos incluídos em três coletâneas. A opção pela ficção me parece bem clara, é que gosto mais de fazer na literatura. Acho que minhas obsessões e preocupações estão em todos os livros, deve haver uma certa unidade em todos eles Assim, de cara, dá pra notar uma mudança no tempo. Notícias do Mirandão (2002), Bandeira negra, amor (2005) e O ponto da partida (2008) tratam de um Rio contemporâneo, daria até para dizer que formam uma trilogia. Em O inventário, eu pulo para o início do século XX, há um deslocamento bem forte. Todos estes livros tratam também de personagens com dificuldades para se situar no mundo, com muitas dúvidas. Talvez seja uma outra característica, não sei.

Você crê que o livro pode ajudar a resgatar a obra de Julio Reis?
Espero que sim, ficarei feliz se isso acontecer. De certa forma, isso permitiria a realização de um sonho do meu avô.

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