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“Macaco, macaco, macaco”


Por Fernando Molica em 01 de maio de 2014 | Comentários (0)

“Às vezes, comentários mais agressivos. A ofensa de sempre: eterna, lugar-comum, óbvia, mas, nem por isso, menos letal. Um xingamento prêt-à-porter, pronto para o uso; democrático, ao alcance de qualquer um, até de quem fosse mais preto – não contava a cor da pele, mas a necessidade de subjugar, de humilhar, de colocar no devido lugar: “Macaco, macaco, macaco.” Quantas vezes tive que ouvir? Macaco, macaco, macaco, assim, repetido muitas vezes, meio cantado, ofensa insistente, irrespondível, mantra que resistia a qualquer argumentação. Minhas respostas e meus palavrões sequer eram ouvidos. Era só o coro, macaco, macaco, macaco,macaco, macaco. Eu xingava, tapava os ouvidos, corria; as palavras ficavam, furavam tímpanos, me acordavam, meio da noite, macaco, macaco, macaco. Às vezes nem chega a ouvir, mas pressentia. Dava para ler, para prever; as intenções, o filho-da-puta da vez. Eu olhava o rosto do sujeito, adivinhava o bote, a abertura dos lábios na minha direção. Eu sabia como, a sílaba que se ameaçava, a deformação que causava na boca de quem a vomitava, a boca que se abria, movimento ao mesmo tempo vertical e horizontal, buraco que surge numa parede e deixa passar um vento fétido, pesado, vento-soco, vento-porrada. Lá vinha ela, maldita sílaba, “ma”, ma de macaco.

Feito um jogo que eu tinha que jogar, jogo cheio de sacanagens, obstáculos, regras feitas pelo inimigo, modificadas no meio da partida. Hoje eu sei: comentários, expressões de preconceito, até elogios funcionavam como balizas, placas de trânsito. Siga nesta direção, não pare na pista, não ultrapasse, cuidado. Fundamental calcular a velocidade máxima permitida, até onde poderiam ir meus avanços, o limite de meus desvios de rota. O tempo todo me movida numa estreita margem de tolerância. Não podia errar, se preto joga mal é porque se vendeu. Preto não podia acordar indisposto, preto não poderia errar chute, se driblado. Porque era preto, Barbosa não podia levar o gol de Ghiggia. Não fez na entrada, fez na saída, no último jogo, na decisão da Copa. Crioulo burro, crioulo safado, amarelão, raça ruim.

Eu achava, era preciso manter a calma. Isso, mesmo quando o cartão de estacionamento era esticado na minha direção, altura dos meus olhos, na porta do restaurante. É aquele Golf vermelho, por favor, disso o dono do carro abraçado a uma mulher. Por favor. Por favor é a puta que pariu, vontade de dizer, mas não dizia. Melhor a fazer era não fazer nada, melhor, um quase-nada. Olhar pra cara do babaca, ar que misturasse espanto e ironia, fazer com que o pequeno cartão pesasse na mão do idiota que me confundia com guardador de carro de restaurante. Olhar que fizesse aquele sujeito se dar conta de que negros poderiam frequentar o mesmo lugar que ele, que eu podia estar ali. Olhar que o fizesse sentir culpado, que o constrangesse diante da mulher bonita; quando notasse a merda, ela olharia para o chão, ajeitaria o xale no pescoço, buscaria apoio no batom, dedos que se atropelariam na bolsa. Tudo muito rápido, gestos tortos, empastelados, mal impressos; trilha sonora falha, cheia de ruídos. O dono do Golf iria murmurar um pedido de desculpas, não foi por mal, bebi um pouco, me confundi, enquanto se perguntava em que time joga esse crioulo. O que será que é cantor? O guardador, negro ou nordestino, ou negro e nordestino, se aproximaria, por favor, doutor, arremataria em um bote o cartão do estacionamento e apressaria os passos na direção do Golf vermelho. O carro dele, claro, antes do meu.”

(Trecho de ‘Bandeira negra, amor’, romance que lancei em 2005 pela Objetiva e que sairá em e-book, na Alemanha, pela Edition Diá).

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