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Meu último trema


Por Fernando Molica em 03 de junho de 2009 | Comentários (4)

Para ressaltar “as línguas faladas dentro da Língua”, Marcelo Moutinho e Jorge Sá-Reis, organizadores do Dicionário amoroso da língua portuguesa, optaram por não seguir as normas do novo acordo ortográfico. Os contos e poemas dos autores de países de quatro continentes foram publicados do jeito que mais parece traduzir a maneira que cada um tem de falar e pensar.

Antes que um protesto de características saudosistas, a decisão de Moutinho e de Sá-Reis reforça um ponto básico de toda essa discussão em torno do acordo. Até que ponto a diversidade ameaça uma unidade, no caso, a da língua portuguesa? Arrisco dizer que seria o contrário: a diversidade – de sotaques, de expressões, de jeitos de falar – até colabora para a formação de uma unidade dinâmica, corajosa, capaz de exprimir diversidade dentro de um conjunto que não pára de absorver mudanças.

Insisto num ponto que já levantei aqui. As diferenças ortográficas em nada impediam a leitura de autores do lado de lá do Atlântico. Mais, tornavam a aventura ainda mais saborosa, divertida. O grave é que o tal acordo procura formalizar uma maneira inédita de escrever o português. Não se buscou uma unidade em torno de consensos já existentes. Partiu-se para a criação de uma novilíngua que tenta construir pontes desnecessárias e que ajudam a enfear a paisagem.

Falou-se na necessidade de uma única norma culta, que preservasse o idioma, que facilitasse sua difusão internacional. É até engraçado falar em preservação numa época em que todos falam entre si, que as formas de comunicação estão tão acessíveis. Ao longo dos séculos, o português foi implantado nos confins da África e da Amazônia e soube resistir ao isolamento, à possibilidade de criação de dialetos. Falamos todos a mesma língua, não seria agora que, já bem grandinha, ela iria se perder.

Sei não, fico meio comovido ao ler, no meu conto que integra o Dicionário, a palavra “conseqüências”: foi talvez a última vez que terei conseguido imprimir um trema em um livro. Talvez, só de sacanagem, dê o nome de Müller a algum futuro personagem. Os caras do acordo, afinal, decidiram respeitar o trema dos nomes próprios.

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Comentários
06 de junho de 2009

Caro Fernando, só mesmo na cabeça dos burocratas lingüísticos, com trema, é que esse tipo de idéia faz sentido. Nem sei na verdade se não há algo maior por trás disso. Algo que seja uma boa desculpa para movimentar as gráficas. Cada cultura tem suas peculiaridades, seus sotaques. Não é unificando a ortografia que se remove barreiras. Tenho lido literatura dos países lusófonos e, passadas as primeiras páginas, tudo é perfeitamente compreensível e enriquecedor. Não indo tão longe, será que se escrito hoje, Vidas Secas, teria que respeitar o acordo ortográfico? É um livro delicioso que contém centenas de palavras que sequer existem. Isso não faz dele um livro incompreensível. Enfim, aos meus cinqüenta anos, vou continuar a escrever da forma como fui ensinado. Não se mexe em time que está ganhando. Forte abraço!

Sergio Fonseca
04 de junho de 2009

Perfeito. Perfeito.

Eduardo Carvalho
04 de junho de 2009

Análise perfeita. Assino embaixo.

Marcelo
04 de junho de 2009

Fernando, boa reflexão. A diversidade é tão fundamental quanto o ar para a existência humana.

paulo thiago de mello