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Mortos são vítimas*


Por Fernando Molica em 27 de junho de 2023 | Comentários (0)

Muitas pessoas comparam a comoção gerada pelo acidente com o submarino que matou cinco pessoas com a indiferença e o desprezo em relação às centenas de milhares de refugiados que morrem em naufrágios de botes precários em que tentam chegar à Europa. Uns eram milionários; outros são pretos e miseráveis.

Os primeiros representavam a prosperidade, se tivessem sobrevivido seriam recebidos com festas; os outros, quando conseguem chegar, são perseguidos ou presos por policiais a serviço de sociedades que se beneficiaram do passado colonial. A indignação e a tristeza não deveriam ser proporcionais à renda e à etnia das vítimas.

Mas talvez a revolta com a diferença de tratamento também pode ser vista como uma forma de purgação, de expiação. Em sociedades tão desiguais e injustas até mesmo comer bem, todos os dias, chega a ser um privilégio. Não é fácil sair para almoçar e ser abordado por duas ou três pessoas pedindo dinheiro para comer. É quase impossível não sentir alguma culpa ao tropeçar com tanta gente dormindo na rua.

Há meses que, na porta de uma ótima livraria da Zona Sul carioca, jovens pretos se revezam na venda de balas, não dá para achar que isso seja algo banal (e nem de longe sugiro que eles sejam retirados de lá). Ser abordado por aqueles adolescentes pobres na porta de um lugar tão simbólico revela muito sobre a nossa sociedade.

Tudo é uma questão de perspectiva. Para quase todos os habitantes do planeta — entre eles, eu — é impensável pagar o equivalente a R$ 1,2 milhão para ir ao fundo do mar ver os destroços de um navio que afundou há mais de um século. Mas para a grande maioria dos que vivem em países africanos ou latino-americanos é também irreal sonhar com a possibilidade de entrar num avião para passar férias na Europa ou nos Estados Unidos.

Lembro que, em 1982, ao saber do acidente com o avião da Vasp no Ceará que matou 137 pessoas, a empregada doméstica que trabalhava na casa da minha família — estou falando em privilégios, vale frisar — comentou algo como “Também, essas pessoas ficando andando pra cima e pra baixo…”. No universo daquela mulher pobre, as vítimas também tinham lá sua parcela de responsabilidade, não teriam morrido se não ficassem saracoteando por aí. Lógica bem semelhante aos que criticam a repercussão das mortes no submarino.

A concentração de riqueza no mundo é escandalosa e absurda. Tão chocante quanto autogolpe aplicado por executivos das Lojas Americanas é saber que os três principais acionistas da empresa aceitaram tirar de seus bolsos um total de até R$ 12 bilhões para diminuir o tamanho do buraco e dos prejuízos — imaginemos o que é cada um deles fazer um pix de R$ 4 bi, como é que alguém pode ter tanto dinheiro assim?

Ressaltar a tragédia dos imigrantes é fundamental. Discutir a pobreza e buscar mecanismos para diminuí-la é essencial, ter vergonha de viver num mundo tão díspare nos deixa mais humanos. Mas não podemos deixar que tudo isso imploda nossa capacidade de ficarmos tristes e de lamentar o acidente com o submarino.

Assim como tantos de nós desfrutamos de prazeres inalcançáveis para muita gente, as vítimas apenas buscavam uma aventura, podiam pagar por isso. Culpar os cinco mortos, ironizá-los, pode até aplacar a culpa de muita gente, mas diminui até as melhores intenções.

*Artigo publicado no Correio da Manhã em 26/6/23.

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