Nelson Cavaquinho
Por Fernando Molica em 28 de outubro de 2011 | Comentários (2)
Em homenagem ao centenário do Nelson Cavaquinho, outro desabafo do Ricardo Menezes, personagem de ‘O ponto da partida’.
“Parece bobo dizer isso. No fundo, é mesmo. Meio chavão, lugar-comum, brega. Se fosse um texto, eu vetaria, não publicaria de jeito nenhum. Mas isso aqui é conversa de bar, não é jornal, não é livro, posso falar o que quiser. Preste atenção. Nelson Cavaquinho, ele, os sambas que ele compôs, abrem e fecham capítulos da minha vida. Não faça essa cara, sei que a frase não é das melhores. Mas é assim mesmo. Tem a ver com Nelson, com as músicas dele. Vocês, rubro-negros, não entendem isso. Ficam naquela tentativa idiota de vencer, vencer, vencer. Coisa chata, previsível, sem graça, parece time do Bernardinho, o escritório daquela minha ex. Pior é que volta e meia acabam perdendo, ficam frustrados porque não venceram, venceram, venceram. A vida não é assim, na vida a gente se fode mais do que ganha. No Campeonato Brasileiro, por exemplo: são quantos times? Vinte? Vinte e quatro? Pois é, se são vinte, são sempre 19 contra um. No fim, um ganha e dezenove perdem. O número de perdedores é sempre maior. É claro também que o um, o vencedor, vai, ao longo dos anos, perder mais do que ganhar. Pode vencer campeonato, ser vice, conquistar aquela taça com nome de carro que vocês ganharam no Japão. Pode ser bi, tri, tetra. Mas, no fim das contas, vai sempre estar no prejuízo. O número de títulos perdidos vai ser sempre maior do que o de títulos ganhos. É matemático, científico, irrecorrível. Aí vocês ficam elogiando esses merdas desses artistas que querem vencer, vencer, vencer. Que morrem de medo de sair de moda, que lançam disco novo todo ano, que se reciclam, que se atualizam, que param de beber, ficam saudáveis, que não têm barriga. Bando de merdas. O Nelson não tinha nada disso, sempre viveu ferrado, sempre tomou porrada, sempre se lixou pra essa porra de mercado. Tava com fome? Vendia um samba, o dono do boteco virava parceiro porque deixou o Nelson comer de graça. O cara foi o compositor mais generoso da música brasileira. Tem parceiro dono de boteco, de puteiro, gerente de hotel vagabundo, de espelunca. Os herdeiros desses caras devem estar até hoje orgulhosos: papai foi parceiro de Nelson Cavaquinho. É, parceiro: entrou com o bife, com o quarto, com a puta. Quer saber? O Nélson tava certo, danem-se. Chegou a dizer isso nisso num samba, dele e do Guilherme. Aquele, assim: Eu que já vaguei nas madrugadas/ E já fui o dono das calçadas/ Pra todos aqueles que me estenderam a mão/ Dividi meu coração. Olha só que coisa bonita: ‘Dividi meu coração’. Ele não reclama, não diz que foi explorado, que teve que ceder parceria. Ele sabe que foi salvo, que comeu, que bebeu, que trepou graças aos que lhe estenderam a mão. E, em troca, simplesmente, dividiu seu coração. Ele queria o quarto, a puta e o bife em vida. Me dê o bife em vida. Defunto não come, não precisa de quarto pra dormir, não precisa de puta. Melhor assim, foi mais honesto. Podia ter tido uma vida melhor? Podia. Mas aí não seria o Nelson Cavaquinho, que dormia bêbado em praça pública, que se apaixonava por mendiga, o dono das calçadas. O Nelson não fazia tipo. Quer saber? Outro assim só o Vandré. Outro que se fodeu, que acabou doidinho, batendo palma pra milico. Esse também foi espada, corajoso. Brigou com aqueles bobalhões da Jovem Guarda, encarou os baianos, botou o Maracanãzinho pra cantar com ele, foi honesto, enfrentou vaia a favor. O cara teve a dignidade de ser contra à massa que tava ali gritando por ele. Não é pra qualquer um. Claro, não segurou a onda, pirou. Foi honesto ao enlouquecer, uma atitude digna, correta. Queria o quê? Virar cantor de protesto de boutique? Ficar fazendo temporada nessas casas que têm nome de celular? Todos que se danem. É como se hoje, doidinho, doidinho, jogasse na cara de todo mundo: ‘Enlouqueci sim, e daí? Fui mais honesto e corajoso que vocês todos que ficaram aí, de sacanagem, brincando de fazer oposição.’ O Vandré é que nem o Nelson. Esse não enlouqueceu, sempre foi meio pirado, doidão. Se fosse nos Estados Unidos ia ser junkie, beatnik, essas merdas. Aqui, não. Aqui era um crioulo pobre, ferrado, bêbado, rei vagabundo, como gostava de dizer. Tão fodido que até PM ele foi. Sabia? O pior PM do Rio, como costumava dizer. Uma vez, foi beber e esqueceu o cavalo, que voltou sozinho pro quartel… Pior PM… Coitado, mal sabia o que vinha pela frente. Hoje os caras teriam vendido o cavalo pro tráfico… Mas, meu caro, meu casamento não podia dar certo. Um sujeito como eu, que gosta do Nelson, nunca poderia ter-se casado com aquela megera. Do que que ela gosta? Sei lá. Deve gostar de tudo o que for arrumadinho, certinho, bem-sucedido, de cantor que venda muitos discos, que faça trilha de filmes de sucesso. Gosta de música de patroa, não gosta de música de empregada. Tem horror ao Nelson.”
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Obrigado, meu caro. Abração, dê notícias do filme.
Fernando MolicaMaravilhoso, preciso esse trecho do livro, Molica. Você esmiuçou bem o perfil do gênio, quase que dividindo o mundo entre duas espécies: os que gostam e os que não gostam de Nelson Cavaquinho. Show de bola! Abração.
Bruno Quintella