Nelson e Cartola; Garrincha e Pelé
Por Fernando Molica em 02 de novembro de 2011 | Comentários (0)
Coluna Estação Carioca, jornal O DIA, 2/11:
O centenário de Nelson Cavaquinho fez bater outra vez uma velha dúvida em meu coração mangueirense: quem foi melhor compositor? O homenageado ou o mestre Cartola? Páreo pra lá de duro, ambos são autores de grandes clássicos da música brasileira. De um lado, ‘A flor e o espinho’, ‘Folhas secas’, ‘Rugas’; de outro, ‘O mundo é um moinho’, ‘As rosas não falam’ e ‘Sala de recepção”.
A doce disputa remete à oposição entre Pelé e Garrincha. Capaz de comover pedras ao dizer que as rosas exalavam o perfume roubado da amada, Cartola está mais para Pelé. Apesar de todos os percalços, teve, principalmente nos anos 1970, uma carreira mais estruturada — lançou discos, fez shows, viu muitas de suas canções fazerem sucesso. Até na postura lembrava o ‘Rei’: magro, imperial, imponente, Cartola representava a melhor nobreza do samba. Mais solar do que Nelson, era um mestre-sala de movimentos harmônicos e elegantes, adjetivos que também podem ser atribuídos às suas músicas.
O noturno Nelson Cavaquinho é quase a tradução musical de Garrincha. Brilhante, teve uma trajetória marcada por triunfos e dores. De vida torta, virou dono das calçadas, se via iluminado por uma “luz negra de um destino cruel” (‘Luz negra’, com Amâncio Cardoso). Foi “um rei vadio/um poeta tão sem lei” que admitia ter tropeçado “pelos cantos dessa vida”. As rosas de Cartola falam de amor, as flores de Nelson remetem à morte: “Quando eu passo/Perto das flores/ Quase elas dizem assim:/Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim (‘Eu e as flores’, com Jair do Cavaquinho).
Como Garrincha, Nelson era capaz de jogadas espetaculares, dribles poéticos e improváveis — como fez ao declarar que feliz é quem “sabe sofrer” (‘Rugas’, com Augusto Garcez e Ari Monteiro). Em outro samba, ao se ver traído, ele chama de amigo o sedutor de sua amada e acrescenta desejar que ele viva em paz com aquela que manchou seu nome (‘Notícia’, com Alcides Caminha e Nourival Bahia): um drible, ainda que sofrido, em quem esperava uma reação óbvia e violenta. Como Garrincha nos últimos anos de sua vida, Nelson e seu parceiro Guilherme de Brito fizeram com que retirássemos nosso sorriso do caminho para que eles passassem com sua dor. Garrincha e Pelé se completaram; com os dois em campo, a Seleção nunca perdeu um jogo. Da mesma forma, fico com o empate na disputa entre Cartola e Nelson Cavaquinho, caso raro de sol que vivia bem perto da lua.
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